África do Sul: morte por monoculturas de eucalipto

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Fábrica Ngodwana da Sappi na Província de Mpumalanga, África do Sul. Foto: PapNews

Várias das plantações da Sappi em torno da fábrica Ngodwana foram convertidas sem autorização, de pinus em eucaliptos. Dados obtidos ao longo de mais de 75 anos demonstram que o eucalipto consome de 30% a 50% mais de água que o pinus. A energia gerada a partir de biomassa gera um aumento de demanda por eucaliptos.

A multinacional South African Pulp and Paper Industries (Sappi) iniciou suas operações em 1936, na África do Sul, e hoje possui filiais em todo o mundo. A Sappi Southern Africa possui cinco fábricas e tem acesso a 529 mil hectares de plantações.

Em 2014, foi implementada uma nova unidade de produção de celulose para expandir a fábrica Ngodwana, da Sappi, às margens do rio Elands, a uns 50 km a oeste de Mbombela, capital da província sul-africana de Mpumalanga.

A fábrica foi fundada em 1965 e passou por várias reformas, nas últimas décadas, principalmente para aumentar a capacidade de produção de celulose e papel jornal.

Devido à queda global na demanda por papéis para impressão e escrita, a empresa decidiu diversificar sua capacidade de produção de celulose desenvolvendo o “Projeto GoCell” na fábrica Ngodwana, com o objetivo de produzir o que se denomina “Celulose Especializada”. Como a Sappi explica em um comunicado à imprensa, “a celulose especializada é uma fibra natural renovável muito procurada, com um amplo leque de usos nas indústrias têxtil, de bens de consumo, alimentícia e farmacêutica”. (1) O projeto foi apresentado ao público pela primeira vez em 2012.

Tradicionalmente na África do Sul, a produção de papel e celulose requer principalmente fibra de pinus, portanto, a maioria das chamadas “florestas” da Sappi na região consiste em plantações dessa árvore. Ainda assim, a produção de celulose pode ser produzida também da fibra de eucalipto, e é por isso que a Sappi planeja converter várias de suas plantações de pinus em plantações de eucalipto.

Além disso, a empresa tem uma participação de 30% em uma unidade de energia de biomassa de 25 MW na fábrica Ngodwana, que está dentro do Programa de Produtores Independentes de Energia Renovável do governo da África do Sul (REIPPP, na sigla em inglês). Nesse programa, o Ministério de Energia da África do Sul contratará 27 novos projetos, abrindo caminho para investimentos significativos na indústria de energia renovável. A expectativa é de que essa unidade de energia de biomassa contribua para a rede nacional já em 2020. O projeto usará biomassa de plantações vizinhas. (2)

Mais plantações, menos água

A África do Sul é uma região onde há escassez de água. A maioria das plantações foi estabelecida em áreas de maior precipitação, principalmente na região da “escarpa” ou “cinturão de névoa”, uma área de transição entre chapadas de pastagens naturais e outras áreas de pastagens naturais mais baixas – e onde a precipitação média costuma ficar acima de 700 mm por ano.

Porém, nos últimos anos, a média de chuvas na área caiu significativamente. Algumas partes da região da escarpa receberam menos de 550 mm. Os modelos de mudança climática ainda preveem uma redução de 60% no fluxo do rio nessa parte oeste da África Meridional em um futuro próximo. Qualquer desenvolvimento tem que levar em conta a alta probabilidade de haver muito menos água disponível, e fazer o planejamento da região de forma adequada.

O elevado consumo de água pelas plantações voltadas à produção de madeira é polêmico há muitos anos na África do Sul. Em 1915, os pequenos agricultores já se queixavam do impacto das plantações de pinus e, principalmente de eucalipto, sobre fontes de água e áreas de captação. Como são estabelecidas nas áreas de captação superiores, essas plantações têm acesso privilegiado à chuva e, em alguns casos, deixam muito pouca ou nenhuma água mais a jusante no sistema fluvial. O baixo fluxo de água nos rios costuma prejudicar as comunidades mais vulneráveis, que dependem da pequena agricultura e dos recursos naturais disponíveis.

As plantações para madeira usam principalmente árvores exóticas, como pinus e eucalipto. Essas árvores são perenes e consomem água sempre que ela estiver disponível. A maioria das árvores nativas é decídua e perde as folhas durante os meses secos de inverno, deixando mais água disponível para outras partes do ecossistema. Por esse motivo, os eucaliptos são chamados de árvores “egoístas”, pois usam água constantemente, mesmo quando a quantidade disponível para sustentar o ambiente integrado é pouca.

Em 1935, a Conferência Florestal do Império Britânico aconteceu na África do Sul. Devido às muitas reclamações que os pequenos agricultores fizeram sobre o uso crescente de água pela indústria de plantações, iniciou-se uma série de experimentos de “captação em pares” para verificar o consumo de água das plantações para produção de madeira. Esses experimentos foram realizados em muitas partes do país e provaram que essas plantações usam muita água. Também demonstraram que o eucalipto usa de 30% a 50% mais água do que o pinus. Os dados obtidos foram usados ​​para elaborar os regulamentos que regem o estabelecimento de plantações para produção de madeira na África do Sul, bem como as diretrizes de licenciamento.

Esse tipo de plantação é o único cultivo de sequeiro na África do Sul classificado como “atividade de redução do fluxo de água”. Portanto, para estabelecer plantações de madeira, é preciso ter uma “licença de uso de água”, que será concedida ou negada dependendo da disponibilidade de água em cada bacia específica. A província de Mpumalanga foi declarada como em situação de “esgotada” em termos de alocações de uso de água para essas plantações e, nos últimos anos, nenhum novo pedido de licenciamento foi examinado nem aprovado.

Os plantadores de árvores para madeira podem passar de um gênero para outro, como do pinus ao eucalipto, mas apenas se solicitarem e obtiverem a revisão das condições de licenciamento. Devido ao maior uso de água, as plantações de eucalipto só podem ser plantadas em áreas menores, para permitir alguma retenção de água nas demais áreas.

Plantações industriais: de pinus a eucalipto

Ao longo de 2020, os moradores levantaram preocupações sobre a conversão das plantações de pinus em plantações de eucalipto. Aparentemente, várias áreas de pinus pertencentes à Sappi já foram convertidas em eucalipto sem autorização. Algumas outras empresas locais de plantações, como a estatal SAFCOL, também têm planos de converter suas monoculturas.

Os moradores locais estão preocupados principalmente com o aumento do uso de água pelo eucalipto, uma vez que essa árvore também tem períodos mais rápidos de restabelecimento e rotação. Esse modelo extrativo de produção de biomassa com alto impacto sobrecarregará ainda maior um ambiente já estressado.

Sabe-se que várias plantações de madeira já foram convertidas na área ao redor da fábrica Ngodwana. As empresas de madeira, incluindo a Sappi, não solicitaram a revisão de suas licenças de uso de água nem reduziram as áreas plantadas para compensar o aumento do uso. Em resposta às preocupações levantadas por vários residentes, um representante da “Forestry South Africa” – a associação da indústria que representa a Sappi e outras empresas de plantação – fez uma apresentação à Agência de gestão da Captação de Água Inkomati Usuthu (IUCMA), alegando não ser necessária nenhuma revisão da licença de uso. O motivo apresentado foi que a diferença entre os usos de água pelo eucalipto e pelo pinus seria “estatisticamente insignificante”. Essa afirmação é enganosa, pois o estudo citado se concentrava principalmente na evapotranspiração. Questões fundamentais não foram discutidas, como o impacto nas águas subterrâneas, e os valiosos dados obtidos em mais de 75 anos de experimentos de captação em pares foram descartados.

Em contraste, as autoridades governamentais insistem na solicitação de revisão da licença de uso da água, e se houver uma conversão de pinus em eucaliptos (um usuário mais pesado de água), a área plantada deve ser menor, como compensação.

As autoridades ainda estão avaliando a situação. Foi feita uma reclamação formal ao FSC, que mantém o selo de certificação dado à Sappi, apesar das irregularidades. De acordo com o Princípio 1 do FSC, as plantações para produção de madeira devem cumprir a lei. Como parece que a conversão em plantações de eucalipto aconteceu sem autorização, a certificação FSC da Sappi deveria ser cancelada.

Os rios estão sob forte estresse. Chove menos. Grande parte da paisagem da região mudou para plantações industriais de monoculturas, que estão constantemente usando todos os recursos hídricos disponíveis. A capacidade de retenção de água e solo das pastagens naturais biodiversas diminuiu, e há um grande aumento na sedimentação de muitos rios locais, com um impacto também grande sobre a fauna e a flora aquáticas. Isso, é desnecessário dizer, tem consequências graves e prejudiciais para aqueles que enfrentam a expansão dessas plantações há décadas.

Converter monoculturas em grandes plantações de eucalipto sem a devida autorização é irresponsável (para dizer o mínimo) e pode levar a um empobrecimento ainda maior do potencial da região. A água é o recurso mais precioso, sem o qual nenhuma subsistência é possível. A indústria da madeira deve perceber que os lucros e o crescimento têm seus limites, e eles foram ultrapassados ​​neste ambiente frágil no sul da África.

Philip Owen
GeaSphere África

Para mais informações, veja o artigo da NewFrame:
https://www.newframe.com/big-timber-accused-of-unauthorised-tree-switch/
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