“Carbono Azul” e “REDD Azul”: transformando os territórios marinho-costeiros (*) em mercadoria

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(*): Por “territórios marinho-costeiros”, entendemos aqui aqueles que incluem florestas de mangue e suas áreas de influência, pradarias de ervas marinhas e pântanos alagados por marés salgadas. Dentro desses territórios e no seu entorno, vivem as comunidades que dependem dos manguezais e de outras áreas marinho-costeiros para sua sobrevivência.

1. O que é um projeto de “Carbono” ou “REDD Azul”?

Quem procura saber mais sobre “Carbono” ou “REDD Azul” descobrirá que está se falando de algo parecido com o REDD (Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal, para mais informações consulte o site do WRM), uma proposta que vem sendo promovida há anos em florestas tropicais terrestres na América Latina, na África e na Ásia. No caso do “REDD Azul”, trata-se de carbono armazenado nos ecossistemas marinho-costeiros, em particular nas florestas de mangue. Este armazenamento ocorre naturalmente, em especial, a absorção de CO2 por plantas que vivem na água. Florestas de mangue, pradarias de ervas marinhas e pântanos alagados por marés salgadas, todos bastante ricos em plantas, são ecossistemas marinho-costeiros que, segundo os promotores do “REDD azul”, sequestram grandes quantidades de carbono da atmosfera e as armazenam em seus sedimentos e solos.

Os projetos de “Carbono" ou "REDD Azul” já em curso costumam ser realizados dentro de uma determinada área de manguezal, propondo sua conservação e/ou reabilitação. Como em outros projetos de REDD nas florestas terrestres (veja o Boletim 184 do WRM), buscam mostrar que, com um incentivo financeiro adicional, é possível evitar emissões ou aumentar o estoque de carbono na área do projeto. Primeiro, costuma-se fazer um inventário da quantidade de carbono que estaria sendo “armazenado” na área do projeto durante um determinado período. Para isso, realiza-se uma série de cálculos, tentando prever a quantidade de carbono na área no início do projeto e também a quantidade ao final dele. Dentro da lógica do REDD, também é preciso prever a quantidade de carbono que a área teria futuramente se não houvesse o projeto. A suposta quantidade de carbono que ele estaria gerando – os “créditos de carbono” –, resulta desses cálculos que são impossíveis de fazer com precisão (1).  Seguindo a lógica do mercado de carbono, o comprador desses “créditos” ganharia o direito de continuar emitindo a quantidade de CO2 que estaria sendo “armazenada” pelo projeto. Na prática, isso resulta em nenhuma redução de emissões de CO2, porque o carbono supostamente “armazenado” na área de manguezal estaria sendo emitido em outro lugar pela empresa compradora dos “créditos”.

Os promotores de iniciativas de “Carbono" ou "REDD Azul” esperam que os mercados de carbono possam gerar futuramente o dinheiro para seus projetos. Por isso, fazem um lobby forte para que o “REDD Azul” seja incluído dentro de um acordo internacional sobre REDD nas conferências do clima anuais da ONU, no marco da UNFCCC: as chamadas COPs do clima. Os governos de Costa Rica, Tanzânia, Indonésia e Equador já incluíram manguezais em suas políticas nacionais de REDD. (2)

2. Argumentos usados pelos promotores do “Carbono" ou "REDD Azul” e respostas a eles.

Os promotores do “Carbono" ou "REDD Azul” usam uma série de argumentos para defender a ideia. Citamos aqui alguns dos principais, e buscamos responder a eles:

- Argumento 1: Os ecossistemas marinho-costeiros são capazes de absorver muito carbono, mais do que as florestas terrestres, e o conhecimento científicodisponívelpara medir isso é suficiente.

Conforme o portal de internet “Carbono Azul” (3), “As taxas de absorção e armazenamento de carbono são comparáveis (e, muitas vezes, maiores do que) as taxas de absorção de ecossistemas terrestres, como florestas tropicais ou turfeiras”. O portal afirma ainda que: “Diferente da maioria dos sistemas terrestres, que atingem um equilíbrio de carbono do solo depois de décadas, a deposição de dióxido de carbono em sedimentos de ecossistema costeiro pode continuar por milhares de anos”. Pesquisas de instituições da ONU, como seus Programas para o Meio Ambiente (UNEP) e para Alimentação e Agricultura (FAO), sugerem que “7% de reduções de emissões de dióxido de carbono (CO2), necessárias para manter a concentração na atmosfera [de CO2] abaixo de 450 ppm [considerado um valor que, segundo a maioria dos cientistas, nos dará uma chance de 50% de manter o aquecimento global dentro do limite de 2 graus] podem ser alcançadas protegendo e recuperando manguezais, pântanos alagados e pradarias marinhas, chegando à metade do que se espera alcançar com o REDD [em florestas terrestres]”. (4) Por isso, os promotores do “Carbono Azul” chegam a afirmar que ele se torna um “instrumento transformador no manejo de carbono natural em nível global”. (5)

Os promotores do “Carbono Azul” também afirmam que “o conhecimento científico atual sobre absorção e emissões potenciais de ecossistemas costeiros é suficiente para desenvolver de forma efetiva incentivos para manejo, política e conservação de carbono para o Carbono Azul costeiro”. (6)

Resposta ao Argumento 1:

Em primeiro lugar, os projetos do “REDD Azul” se baseiam na lógica aplicada para calcular carbono nos projetos de REDD em florestas terrestres, que não chega a cálculos confiáveis. Sempre resultará em uma quantidade aproximada de carbono no início de um projeto e em uma estimativa bastante subjetiva sobre quanto carbono o projeto teria “armazenado” ao seu final. Além disso, os cientistas enfrentam muitas dificuldades para conseguir compreender os processos de armazenamento de carbono. Segundo afirma Gabriel Grimsditsch, funcionário do programa marinho e de ecossistemas marinhos do UNEP: “Existem incertezas consideráveis em torno destas estimativas e do nível de compreensão do armazenamento de carbono em ecossistemas costeiros”.(7)

As “frases de efeito” apresentadas por pesquisas e projetos sobre quantidades de “Carbono Azul” que estariam sendo armazenadas dão uma pista sobre essas incertezas. Enquanto a Iniciativa pelo “Carbono Azul” afirma que a taxa de absorção de carbono por florestas de mangue seria “duas ou até quatro vezes maior do que taxas globais observadas em florestas tropicais” (8), a Fundação Neotrópica, que realiza um projeto-piloto de “Carbono Azul” na Costa Rica, afirma que as áreas marinho-costeiras, por exemplo, manguezais e outros pântanos, “armazenam até cinco vezes mais carbono do que as florestas tropicais”(9).

Ao mesmo tempo, pouco se lê na propaganda do “Carbono Azul” sobre como as mudanças climáticas já em curso afetam e afetarão os oceanos e as áreas marinho-costeiras, e as funções vitais que cumprem. Sabe-se que a crescente absorção de CO2 – presente na atmosfera em uma quantidade maior do que antes – pelos oceanos tem deixado sua água mais ácida. No longo prazo, níveis mais altos de carbono no oceano podem ter uma série de impactos que não só interferirão na capacidade dos oceanos de absorver CO2, mas também incentivarão o processo inverso pelo qual os oceanos emitem carbono. Esses processos ainda são pouco estudados e compreendidos, o que indica uma incerteza muito maior em torno do que irá acontecer futuramente com o “Carbono Azul”. Mas todas essas incertezas não impediram a realização de algumas iniciativas que soam até absurdas.

 

Box: Os absurdos do “Carbono Azul”

Sob o argumento de que os oceanos são “os lugares mais promissores para sequestrar carbono”, o Centro de Pesquisa sobre Sequestro de Carbono Oceânico do Departamento de Energia do governo dos EUA em Berkeley realizou pesquisa sobre a injeção direta de CO2 a uma profundidade de 1.000 metros ou mais, através de estações na costa ou diretamente no mar, com navios dispondo de tubulações suficientemente longas. Outra técnica pesquisada tem sido uma forma chamada de “fertilização” dos oceanos com partículas extremamente pequenas (nanopartículas) de ferro, com o efeito do estimular a fixação do carbono pelo fitoplâncton. (10) Em 2007, uma comissão científica intergovernamental fez um alerta de que a fertilização de oceanos com ferro para tentar sequestrar carbono de forma comercial traz “riscos ambientais e carece de evidências científicas de efetividade”. A declaração foi uma reação a uma tentativa da empresa Planktos, Inc. de jogar 100 toneladas de ferro em uma área de 10 mil km2 no mar do Pacífico para poder vender créditos de carbono. (11)

 

Argumento 2: os territórios marinho-costeiros estão sendo destruídos rapidamente em função de má gestão.

Como consequência da suposta capacidade extraordinária de absorver e armazenar carbono, os promotores do “Carbono Azul” argumentam que é muito importante conservar essas áreas porque, se elas forem destruídas, essa quantidade enorme de carbono estaria sendo liberada na atmosfera. Eles apresentam dados que demonstram que áreas marinho-costeiras estão sendo destruídas rapidamente, a uma taxa de até 7% por ano, o que significaria que, em duas décadas, já estariam totalmente destruídas. Essa destruição está sendo atribuída a “práticas insustentáveis de uso de recursos naturais, má gestão em nível da bacia hidrográfica, más práticas de desenvolvimento costeiro e má gestão do lixo”. (12)

Resposta ao Argumento 2:

Uma primeira questão que chama a atenção é a vaga e duvidosa descrição feita pelos promotores do “Carbono Azul” sobre as causas da destruição acelerada das áreas marinho-costeiras no mundo, como os manguezais. Eles atribuem essa destruição basicamente a uma “má gestão”. Mas a RedManglar Internacional,  uma rede de organizações na América Latina em apoio a comunidades que dependem dos manguezais, chega a uma análise bem diferente. Segundo essa Rede, a maioria dos países com manguezais na América Latina já perdeu entre 60 e 80% deles. A RedManglar aponta para as seguintes causas: mudança no uso do solo, concentração de terras, criação industrial de camarão, indústria de produção de sal, megaprojetos da indústria do turismo, barragens, monocultivos agroindustriais, como palma africana/dendezeiro e cana de açúcar, extração de petróleo e gás, e construção de estradas, grandes portos e estaleiros navais (13). Praticamente todas essas causas têm a ver com projetos e atividades de grandes empresas em territórios marinho-costeiros que beneficiam, sobretudo, a esses grupos empresariais, e prejudicam as comunidades locais que habitam esses territórios e deles dependem.

 

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Argumento 3: Os territórios marinho-costeiros têm um alto valor monetário em função de seus “serviços ecossistêmicos”, e reconhecer isso pode garantir sua conservação.

 

O portal de “Carbono Azul” afirma que, além do carbono, as áreas marinho-costeiras“ têm um alto valor, por uma série de serviços que fornecem”. Segundo agências da ONU, o valor monetário desses “serviços ambientais” chegaria a 25 trilhões de dólares por ano.  Elas afirmam que as áreas marinho-costeiras são úteis para a adaptação às mudanças climáticas, protegendo as pessoas contra “erosão costeira, tempestades e enchentes”. Além disso, afirmam que elas “fornecem alimento através da pesca e são um habitat para os pequenos peixes prosperarem”. Afirmam, também, que essas áreas podem melhorar a qualidade da água, garantir renda através do turismo e fornecer materiais de construção e ingredientes para a medicina. (14)

Resposta ao Argumento 3:

Primeiramente, o que chama a atenção é o grande valor financeiro – 25 trilhões de dólares por ano – atribuído aos chamados “serviços ecossistêmicos” dos territórios marinho-costeiros. Mas se as empresas mais responsáveis por destruir esses territórios tomam conhecimento desse valor, sua prática será outra?

O autor inglês George Monbiot afirma que o recente fenômeno de dar preço à natureza, no caso, às florestas de mangue, não quer dizer que antes não se tivesse conhecimento do valor e da importância imensos que essas florestas têm.  Segundo ele, relações de poder profundamente desiguais influenciam muito mais o destino dos territórios marinho-costeiros:

“Mesmo que não tivéssemos um número para taxá-los, sabemos, há séculos, que os manguezais têm um grande valor para a proteção costeira e como lugar de reprodução de peixes. Mas isso não tem evitado que pessoas subornem e pressionem políticos para transformar essas florestas em fazendas de camarão. Se um hectare de fazenda de camarão resulta em 1.200 dólares para um homem rico e com boas conexões, isso pode ser bem mais do que os 12.000 dólares que valeria para populações costeiras oprimidas. Saber o preço não muda nada nesta relação: outra vez, trata-se de poder”. (15)

Na prática, valorizar financeiramente as florestas e transformar seus “serviços ecossistêmicos” em ativos ou títulos com valor financeiro, que possam ser vendidos em mercados financeiros, têm garantido a continuação das emissões de CO2 por indústrias poluidoras, além de resultar em benefícios para outros atores envolvidos nesses mercados: empresas, consultores, certificadores, instituições financeiras e  grandes ONGs preservacionistas.  Muitos desses atores, com apoio de governos e da ONU, também estão envolvidos em iniciativas de promoção do “Carbono Azul”.

Box: O valor dos manguezais para as comunidades e a natureza em geral

Os manguezais contêm uma grande quantidade de peixes, caracóis, conchas e caranguejos que são, muitas vezes, a base alimentar das comunidades e dos povos dos manguezais. Estes habitantes coletam plantas medicinais, e os canais dos manguezais são o meio de transporte e de comunicação entre pessoas e comunidades que, com canoas e lanchas, movimentam-se e transportam pessoas e produtos sem alterar ou contaminar o entorno.

Além disso, as raízes dos manguezais formam um emaranhado ou entrelaçado que funciona como criadouro e refúgio natural para uma grande diversidade de peixes e mariscos. Os manguezais cumprem funções de criação, refúgio, alimentação e reprodução para 75% das espécies tropicais em zonas marinho-costeiras, e de habitats para aves locais e migratórias. Por esses e outros motivos, são incluídos na Convenção de Proteção de Pantanais, RAMSAR, como pantanais de importância internacional.

Os manguezais são também amortecedores naturais frente ao impacto de fenômenos como tempestades, tsunamis e furacões. As raízes dos manguezais protegem as costas e outras margens de áreas sujeitas à influência das marés e inundações. Os efeitos desses fenômenos naturais estão ocorrendo com mais frequência devido à crise climática. Ademais, os manguezais cumprem um papel importante no controle da erosão das margens de canais e estuários. O sistema de raízes dos manguezais funciona também como diques que retêm os sedimentos resultantes do efeito das marés ou dos rios, contribuindo para que isso não ocorra ou ocorra menos nos canais. Muitas vezes, os manguezais são comparados com os “rins” da Terra e, com certeza, funcionam como purificadores de águas contaminadas que chegam ao mar.

Além de tudo isso, os manguezais têm um valor direto para as populações locais, que desde épocas ancestrais têm obtido sua fonte de sustentação cotidiana nessas áreas, por serem, sobretudo, populações de pescadores e pescadoras artesanais e de coletores de mariscos. Ou seja, os manguezais são sua fonte de segurança alimentar e sustentação familiar. Mas o valor do manguezal se expressa também como referência social e cultural das comunidades locais; é em torno dele que elas articularam suas vidas, formaram um sentido de pertencimento a esse ecossistema e construíram sua identidade. Por último, há comunidades que praticam um turismo ecológico, com o qual a população nacional e estrangeira pode desfrutar da flora e da fauna, das paisagens e de atividades recreativas, mas também tomar conhecimento da problemática em torno do manguezal. (fonte: RedManglar Internacional).

 

3. Algumas iniciativas relevantes para o “Carbono" ou "REDD Azul” e os atores que as promovem

- Em 2009, a transnacional francesa Danone iniciou, em colaboração com a IUCN (16) e a ConvençãoRAMSAR (17) a recuperação de cerca de 4.700 ha de florestas de mangue em Casamans e SineSaloum, no Senegal. Também começou um projeto, em Sundarbans, na Índia, de recuperação de floresta de mangue em cerca de 6.000 ha. A empresa informa que se trata de um investimento de cerca de 23 milhões de euros para gerar entre 6 e 11 milhões de toneladas de créditos de carbono por ano dentro de 23 anos (18), sendo que a empresa pode usar esses créditos para “compensar” suas próprias emissões ou revendê-los em mercados de carbono.

IUCN, Ramsar e a empresa de consultoria holandesa Sylvestrum desenvolveram a metodologia desse projeto. Conforme afirma Bernard Giraud, vice-presidente de Sustentabilidade da Danone, a iniciativa “terá um impacto significativo sobre comunidades locais e estimulará empresas a fazer investimentos em nível de corporação e abraçar novas oportunidades de compensação de carbono em regiões costeiras”. A Danone, com vendas de 17 bilhões de euros por ano, e presente em mais de 120 países, busca reduzir suas emissões de carbono em 30% e “compensar” o restante com uma abordagem chamada “inovadora”, que inclui, dentre outros, esses projetos de restauração de áreas marinho-costeiras, até porque eles são capazes, conforme a empresa, de “sequestrar grandes volumes de carbono”. (19) No entanto, a preservação dessas áreas não influencia a grande poluição causada por essa transnacional, que está entre as 10 empresas mais poluidoras do planeta. (20)

- Ainda em 2009, a UNEP e a Grid-Arendal (21), uma organização da Noruega que presta serviços à UNEP, em colaboração com a FAO e as comissões oceanográficas internacionais da UNESCO, fizeram um relatório sobre o “papel fundamental” dos oceanos para um clima equilibrado, buscando incentivar uma agenda acerca desse papel nas negociações internacionais sobre o clima. O Estudo sugere criar um “fundo de Carbono Azul” e também “mecanismos para permitir o uso futuro de créditos de carbono para a captura de carbono em ecossistemas marinhos e costeiros, e um armazenamento efetivo quando houver métricas [formas de medição] aceitáveis.”(22)

- Em 2010/2011 foi criada “A Iniciativa do Carbono Azul”, uma iniciativa global voltada à mitigação das mudanças climáticas e que está trabalhando para “a restauração e o uso sustentável de ecossistemas costeiros e marinhos”. É uma iniciativa da IUCN, da ONG preservacionista ConservationInternational e da IOC-UNESCO (23). Ela tem dois grupos de trabalho importantes, um mais científico e outro político.

Em 2011, em um seminário dessa iniciativa na Suíça, o grupo de trabalho sobre a política para o “Carbono Azul” se reuniu com o objetivo de elaborar o chamado “Quadro Político para o Carbono Azul”. No relatório do encontro, afirma-se que “O ‘Quadro Político’ é desenhado para permitir a inclusão fluida das atividades de Carbono Azul em processos existentes de políticas internacionais e de financiamento, onde for possível, (..). A instância da ONU que discute o clima, a UNFCCC, é indicada como o fórum internacional com maior prioridade, além da Convenção da Biodiversidade (CBD). O documento afirma a importância de “Integrar as atividades de Carbono Azul integralmente dentro dos processos políticos internacionais e o financiamento da UNFCCC como parte dos mecanismos para mitigar as mudanças climáticas”.(24) Esta atividade na Suíça contou ainda com outros atores, como universidades, o Banco Mundial, os governos dos Estados Unidos e do Equador, além de ONGs como MARES/Forest Trends e WetlandsInternational. (25)

- Outra iniciativa é o portal na internet chamado “Carbono Azul”, criado pela UNEP e pela Grid Arendal.  A página se apresenta como um “lar” para a “comunidade internacional do Carbono Azul” e afirma que “serve como plataforma para compartilhar experiências e informação, ajudando a conectar e coordenar atividades e iniciativas. Todos os profissionais do Carbono Azul são convidados a participar (..)”. (26)

- As empresas de consultoria que, no caso do REDD em florestas terrestres, já fazem a certificação desse tipo de projeto também estão de olho no novo mercado de projetos do “REDD Azul”. A certificadora de projetos de “compensação” de carbono VCS (VerifiedCarbon Standard) já dispõe de uma metodologia, aprovada em janeiro de 2014 sob seu programa de “manejo sustentável de pastagens” para quantificar “os benefícios para o efeito estufa de atividades de criação de áreas alagadas”. (27)

- Várias fundações, inclusive empresariais, como a empresa transnacional de petróleo francesa Total, que há tempo financia atividades preservacionistas de grandes ONGs ambientalistas, também estão envolvidas no financiamento das atividades que buscam agora promover o “Carbono Azul”; outros financiadores são agências de cooperação e governos de países que emitem relativamente muito CO2 e que estão em busca de formas eficientes de “compensar” essas emissões, a exemplo do Governo da Alemanha.

Chama a atenção que nenhuma das comunidades que conservam seus territórios marinho-costeiros há gerações é protagonista dessas iniciativas.

O papel das comunidades na conservação dos territórios marinho-costeiros

Há séculos, as áreas marinho-costeiras, sobretudo os manguezais, têm sido os territórios tradicionais de comunidades de pescadores e pescadoras artesanais, de camponeses e camponesas, de povos indígenas e outras populações tradicionais, como afrodescendentes (no caso da América Latina).

Essas comunidades têm defendido seu território porque sua sobrevivência física e cultural está profundamente ligada a eles, e muitas lutas de comunidades já ocorreram e atualmente ocorrem em todo mundo, buscando enfrentar projetos destrutivos impostos de cima para baixo. É graças a essas lutas que hoje há muitas áreas de manguezais conservadas no mundo, e outras tantas em processo de recuperação devido aos esforços de comunidades para reflorestá-las.

Vale ressaltar o papel fundamental das mulheres na defesa e na proteção dos manguezais. São elas, em especial, que costumam realizar atividades de pesca, coleta e extração de conchas, caracóis e caranguejos, e outras espécies que são parte importante da dieta das suas famílias. Os efeitos da expulsão das populações e da destruição dos seus territórios recaem particularmente sobre a vida delas, devido à perda das fontes e condições para sustentar suas famílias. (baseado em informação da RedManglar Internacional)

 

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4. Atividades prioritárias dos promotores do "Carbono Azul".

- Pesquisa

O site “Portal do Carbono Azul” lista mais de 30 iniciativas nesse campo no mundo, a maior parte, na Ásia e na África (28). Em sua grande maioria, são projetos com o objetivo de realizar pesquisa sobre métodos para medir a quantidade de carbono nas florestas de mangue e outros ecossistemas costeiros, e sobre sua capacidade de sequestro de carbono. Esta pesquisa é voltada a apoiar e melhorar a metodologia da elaboração de projetos de “REDD Azul”, visando colocar este “Carbono Azul” nos mercados de carbono obrigatórios e voluntários. Há também várias pesquisas em andamento sobre outros “serviços ecossistêmicos”.

Alguns exemplos de pesquisa listados no “Portal do Carbono Azul” são:

- um projeto de pesquisa em Abu Dhabi, nos Emirados Árabes, que afirma que os resultados podem servir para a “avaliação da viabilidade de uso no mercado de carbono”. Nesse projeto, os pesquisadores investigam também o “potencial” de outros “serviços ecossistêmicos” das áreas marinho-costeiras.

- um projeto de pesquisa no Paquistão, no Vietnã e no Sri Lanka, que procura elaborar uma metodologia para que empresas possam “promover de forma responsável a conservação/restauração de florestas de mangue, redução de emissões de carbono e desenvolvimento sustentável ao oferecer financiamento para comunidades”. O objetivo principal é poder facilitar o financiamento para que pequenas áreas de mangue consideradas inviáveis entrem em “mercados voluntários ou obrigatórios”.

- um projeto na África, desenvolvido em Camarões, Guiné, República do Congo e RDC, tem buscado pesquisar “o valor dos serviços ecossistêmicos (inclusive carbono) dos manguezais da região Centro-Oeste da África”, para defender “a inclusão de florestas de mangue no REDD+ e em esquemas voluntários de carbono”.

- Projetos demonstrativos

Outra prioridade dos defensores do “Carbono Azul” é promover atividades demonstrativas, através de projetos que buscam convencer a UNFCCC de que o “REDD Azul” precisa ser incluído em um novo acordo climático ou, especificamente, em um acordo sobre o REDD. Esses projetos demonstrativos têm perfis diferentes, mas muitas vezes, têm um componente “comunitário”, buscando mostrar os benefícios do “Carbono” ou “REDD Azul” para comunidades que dependem das áreas costeiras. No entanto, os projetos não mostram que não contribuem para reduzir as emissões de CO2 responsáveis pelo aquecimento global. Ao contrário, escondem por trás de uma imagem positiva o fato de que o próprio projeto justifica que empresas continuem suas emissões de CO2. Um exemplo é o projeto demonstrativo realizado pela Fundação Neotrópico na Costa Rica.

 O projeto “Carbono Azul comunitário” da Fundação Neotrópico

Na Costa Rica, a fundação Neotrópico desenvolve o projeto “Carbono Azul Comunitário”. A Fundação tem conseguido interessar patrocinadores envolvidos em atividades emissoras de CO2 para que invistam no projeto, por exemplo, as fabricantes de automóveis Volkswagen e Ford. Conforme as informações disponíveis, a Fundação identificou comunidades aptas a participar do projeto na região Sul da Costa Rica. Ela argumenta que, lá, os manguezais sofrem bastante pressão e, portanto, correm o risco de ser destruídos. As organizações comunitárias que participam do projeto são organizadas nas chamadas “unidades locais de implementação”, que realizam o trabalho de reflorestamento dos manguezais. Além disso, o projeto também contempla formação comunitária e educação ambiental como parte das atividades. Cerca de 100 mil mudas teriam sido plantadas nos manguezais. (29)

A ONG COECOCEIBA (Amigos da Terra Costa Rica), sem questionar a importância, em si, do apoio a atividades comunitárias de recuperação de manguezais, tem feito questionamentos à lógica por trás desse projeto . A COECOCEIBA explica que a Volkswagen convida a quem tiver um veículo desta marca a doar determinada quantidade de dinheiro às atividades para semear árvores com o objetivo de recuperar e conservar manguezais na região onde se implementa o projeto de “carbono azul”. Desta forma, com o projeto, a Volkswagen estaria “compensando” emissões de CO2 dos carros produzidos por ela. Por isso, a COECOCEIBA avalia que, desta forma, o projeto acaba sendo uma lavagem verde para empresas transnacionais responsáveis pelo aquecimento global, como se os carros da Volkswagen agora estivessem “neutralizando” suas emissões com a reabilitação de manguezais. (30)

 

5. Como conservar os territórios marinho-costeiros?

Os manguezais estão de fato entre as florestas tropicais mais ameaçadas do mundo. O que ainda resta de floresta de mangue no mundo é fruto da presença e da luta de milhares de comunidades, mulheres e homens que têm conservado essas áreas porque sua sobrevivência depende delas e das áreas marinho-costeiras em geral. Sua destruição afeta em especial as mulheres.

Com a tendência ao “Carbono Azul" e ao "REDD Azul”, ONGs, consultores e empresas estão chegando nessas comunidades com um discurso de que agora é preciso conservar mesmo os manguezais, em especial o carbono que eles contêm. Mas, dificilmente a nova tendência ao “Carbono Azul” vai salvá-los ou mitigar a crise climática em geral. Em primeiro lugar, os que promovem o “Carbono Azul” não identificam claramente as causas da destruição dos manguezais e das áreas marinho-costeiras em geral. Em suas análises, eles costumam resumir essas causas como resultado de má gestão e, portanto, não impedem que grandes empresas continuem invadindo e destruindo áreas de manguezais no mundo. Em segundo lugar, pela lógica dos mercados de carbono e de outros “serviços ecossistêmicos”, a conservação de uma área implica cada vez mais dar um direito a alguma empresa de continuar suas emissões de CO2 ou de destruir outra área de manguezal comparável, em biodiversidade, à área conservada. Nesta lógica de mercado em que se “compensa” poluição ou destruição, não há lugar para comunidades e tampouco se lida com a destruição dos territórios marinho-costeiros em geral ou se enfrentam as causas da sua destruição.

As comunidades estão ausentes em toda a propaganda do “Carbono Azul" ou "REDD Azul”. Elas, que vivem nos territórios marinho-costeiros, nunca se preocuparam em saber se seus territórios têm muito ou pouco carbono ou se contêm “serviços ecossistêmicos” e, muito menos, com o preço desses serviços. Não expressam em dinheiro o valor que os manguezais dos quais sobrevivem têm para si, porque costumam dizer que esse preço é incalculável. No entanto, sem ter responsabilidade pelas altas emissões de CO2 da queima de petróleo, gás e carvão mineral, principais responsáveis pelo aquecimento global, essas comunidades já percebem impactos das mudanças climáticas no seu dia-dia.

Como tem mostrado a experiência dos projetos de REDD nas florestas terrestres, também o “REDD Azul”, igualmente uma proposta imposta de cima para baixo, tende a intervir profundamente na vida dessas comunidades e a causar mais problemas do que benefícios. Focados na questão do carbono, os projetos do “Carbono" ou "REDD Azul” necessariamente resultarão também em uma série de restrições impostas ao modo de vida das comunidades e na perda de controle do seu território, tudo para garantir aos mercados financeiros que o carbono – transformado em um papel, um “ativo ou título ambiental” – continue sendo “bem armazenado” na floresta.

Mesmo que muitos projetos-piloto, realizados por ONGs com apoio de grandes empresas, orgulhem-se de seu componente comunitário, as próprias comunidades já tinham descoberto há muito tempo, sem precisar ouvir falar em projetos de “Carbono" ou "REDD azul”, a importância da defesa dos seus territórios de pesca e coleta. Mulheres e homens estão trabalhando há anos na recuperação dos manguezais que foram destruídos por atividades empresariais, para garantir seu futuro e o controle sobre essas áreas.

A ênfase de projetos demonstrativos e outros projetos de pesquisa, colocando os manguezais em mercados mundiais de carbono, apenas adia as transformações estruturais necessárias no modelo de produção e consumo baseado na queima de combustíveis fósseis. Essas mudanças são indispensáveis para que a humanidade tenha chance de manter o aquecimento global dentro de certos limites, para garantir a sobrevivência futura dos manguezais e ecossistemas costeiros em geral e das comunidades que dependem deles. A nova tendência ao “Carbono Azul" ou "REDD Azul”, por não propor essas mudanças, é mais uma falsa solução para a crise climática, além de ser uma forma de manter e fortalecer o poder das empresas e mercados financeiros, ofuscando e transformando sua responsabilidade pela grande destruição ambiental em uma proposta na qual essas empresas e mercados se tornam parte da suposta “solução”.

Este artigo nos mostra também a importância de lutar pela conservação dos territórios marinho-costeiros, mas a partir da resistência e da luta das comunidades pelo reconhecimento de seus territórios de uso pesqueiro e extrativismo comunitário. Isso poderia ajudar decisivamente a reverter o histórico atual de invasão e extração nessas áreas, em benefício de grandes empresas responsáveis pela destruição dos territórios marinho-costeiros. Os governos nacionais e as instâncias internacionais – em especial a Organização das Nações Unidas (ONU) – deveriam apoiar as comunidades nessas reivindicações em vez de ser coniventes com os interesses empresariais e as iniciativas de “Carbono Azul”.

 

Winnie Overbeek, winnie@wrm.org.uy

World Rainforest Movement

 

Notas:

(1) http://wrm.org.uy/pt/livros-e-relatorios/10-alertas-sobre-redd-para-comunidades/

(2) Conservation International e IUCN, “Blue Carbon Policy Framework”, 2011.

(3) http://bluecarbonportal.org/?page_id=2944

(4) UNEP/FAO/UNESCO/IOC/CSIC/Grid Arendal, “A Blue Carbon Fund: the ocean equivalent of REDD for carbon sequestration in coastal states”. Folheto

(5) Conservation International e IUCN, “Blue Carbon Policy Framework”, 2011.

(6) Ibid

(7) http://digitalcommons.wcl.american.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1465&context=sdlp

(8) http://thebluecarboninitiative.org/category/about/blue-carbon/

(9) http://www.neotropica.org/article/carbono-azul-comunitario/

(10) http://www.lbl.gov/Science-Articles/Archive/sea-carb-bish.html

(11) http://www.etcgroup.org/fr/node/641

(12) UNEP/FAO/UNESCO/IOC/CSIC/Grid Arendal, “A Blue Carbon Fund: the ocean equivalent of REDD for carbon sequestration in coastal states”. Folheto.

(13) Informaçõesfornecidas pela Red Manglar

(14)  UNEP/FAO/UNESCO/IOC/CSIC/Grid Arendal, “A Blue Carbon Fund: the ocean equivalent of REDD for carbon sequestration in coastal states”. Folheto.

(15) http://www.monbiot.com/2013/09/18/pricing-the-priceless/

(16) IUCN – União Internacional da Conservação da Natureza: uma organização internacional ambiental com membros que incluem governos, indústria, instituições internacionais e sociedade civil.

(17) RAMSAR é um acordo intergovernamental que foi estabelecido em 1971 para definir os marcos para ações de governos nacionais em prol das zonas úmidas do mundo.

(18) http://bluecarbonportal.org/?dt_portfolio=livelihood-fund-reforestation-projects

(19) www.danone.comhttp://downtoearth.danone.com

(21)http://www.grida.no/about/

(22) http://www.grida.no/publications/rr/blue-carbon/

(23) Intergovernmental Oceanographic Commission of the United Nations Educational, Scientific, and Cultural Organization

(24) Conservation International e IUCN, “Blue Carbon Policy Framework”, 2011.

(25) Ibid.

(26) http://bluecarbonportal.org/

(27) http://www.v-c-s.org/methodologies/methodology-coastal-wetland-creation-v10

(28) http://bluecarbonportal.org/?page_id=668#marker29

(29) http://www.neotropica.org/article/carbono-azul-comunitario/

(30) http://coecoceiba.org/se-enojaron-en-casa-presidencial/