Comercializando direitos comunitários no Gabão: A Lei de “Desenvolvimento Sustentável”

O governo do Gabão adotou uma nova Lei de “Desenvolvimento Sustentável” em agosto de 2014. É a primeira a introduzir créditos não só para carbono ou biodiversidade (1), mas também para o “capital comunitário”, definido como a “soma dos recursos naturais e culturais que pertencem a uma comunidade”. Sem mais explicações, o “capital comunitário” poderia incluir coisas como terras comunitárias, cultivos, recursos hídricos, cultura ou educação. Nesse contexto, as mulheres tendem a ser as mais afetadas, já que, na maioria das vezes, são cuidadoras, educadoras, fazem remédios e plantam os alimentos dentro das comunidades.

A nova lei estabelece que as empresas, no Gabão, podem compensar a destruição que geram sobre as florestas ou territórios tradicionais comprando “créditos de desenvolvimento sustentável”. Esses créditos são divididos em quatro tipos diferentes: créditos de carbono, créditos de biodiversidade, créditos de ecossistemas e capital da comunidade. O sistema de comercialização parece permitir que todos os tipos de crédito sejam totalmente intercambiáveis, ou seja, pode ser possível negociar “capital comunitário” por outros componentes do “desenvolvimento sustentável”. Porém, a lei é pouco clara e está aberta à interpretação. Na prática, isso poderia significar tirar a terra de uma comunidade em uma província, para plantações industriais de árvores, em troca da construção de uma escola para uma comunidade em outra província. A lei parece estar em contradição com os direitos das comunidades locais, afetando particularmente as populações e mulheres indígenas. Empresas destrutivas, como a OLAM, que possui extensas áreas de plantações de dendê no Gabão, tendem a se beneficiar o máximo dessa política.

O que a nova Lei implica?

De acordo com uma análise feita pela plataforma Gabon Ma Terre Mon Droit (GMTMD), o principal objetivo da Lei é estabelecer um mercado no qual as empresas possam usar “projetos de desenvolvimento sustentável” para compensar seus impactos negativos sobre o meio ambiente e as comunidades locais, negociando o que a lei chama de “créditos de desenvolvimento sustentável” (2).

As zonas elegíveis para geração, compra e venda desses créditos de desenvolvimento sustentável são chamadas de “concessões de desenvolvimento sustentável”. A Lei não fornece mais informações sobre a identidade ou a função dessas concessões. Elas devem incluir ou se sobrepor às concessões para exploração dos “recursos naturais” (florestas, agricultura, mineração, áreas protegidas, etc.) ou à terra disponível para uso pelas comunidades? As concessões reduzirão ainda mais essa terra disponível para as comunidades? Essas concessões geram “créditos de desenvolvimento sustentável”, que vêm da criação, da melhoria ou da manutenção de “ativos de desenvolvimento sustentável” relacionados a uma “atividade de desenvolvimento sustentável”. Assim, um desses créditos pode ser gerado, por exemplo, pela manutenção de uma área de alta biodiversidade ou criando-se um certo número de postos de trabalho.

Esta lógica de compensação ambientalmente destrutiva e socialmente injusta está sendo promovida em escala global por um consórcio de empresas transnacionais apoiadas pelos países industrializados, que continuam a depender de acesso cada vez maior e ilimitado a “recursos naturais”. Também é endossada por organismos internacionais como o Banco Mundial, bancos privados e grandes ONGs conservacionistas. Quem promove a ideia da compensação sustenta que ela é o “melhor” caminho para conservar a natureza, desconsiderando políticas e práticas de conservação da floresta muito mais eficazes (3). As populações que dependem da floresta, e as mulheres em particular, são duplamente afetadas por esse mecanismo: por um lado, as comunidades que vivem dentro da área de uma plantação industrial e/ou outro projeto de compensação perdem sua floresta e seu território. Na outra ponta da transação, as comunidades que vivem no local escolhido para “compensar” o dano da plantação industrial também serão afetadas negativamente, perdendo o acesso a seu território florestal e/ou enfrentando graves restrições à forma como podem usá-lo.

Mulheres no Gabão e os impactos da lei

As florestas tropicais cobrem 85% da área de terra no Gabão, e cerca de 300.000 pessoas dependem delas para sobreviver por meio de caça, coleta, pesca e agricultura familiar. Em fevereiro de 2015, representantes de organizações da sociedade civil do país expressaram preocupações com a persistente discriminação de gênero presente em leis e práticas, violência de gênero e falta de acesso das mulheres à justiça (4). As mulheres no Gabão realizam 95% do trabalho agrícola, e ainda havia barreiras jurídicas persistentes à aplicação de seus direitos iguais à terra e à propriedade. O Código Civil definia que o marido era o chefe da família e havia disposições discriminatórias no direito doméstico, especificamente sobre herança.

A expansão de grandes plantações, como as da OLAM, agravará ainda mais a insegurança alimentar já enfrentada pela população em geral como resultado da perda de terras, e do desmatamento e do esgotamento de fontes de água. Um morador de Doubou, na região de Mouila, disse a um estudo sobre os impactos de plantações agroindustriais de dendê e seringueiras sobre as populações locais no Gabão: “Esta floresta nos permite sobreviver e nós não queremos compartilhá-la. Se não pudermos plantar comida, pescar ou caçar, como vamos sobreviver?” (5). Além disso, os problemas de saúde aumentam devido ao uso intenso de agrotóxicos nas plantações. As consequências recaem principalmente sobre as mulheres, aumentando sua exploração e sua pobreza.

A nova Lei de “Desenvolvimento Sustentável” é muito vaga e aberta à interpretação. É difícil de entender e introduz novos conceitos sem dar explicações completas sobre definições e implicações fundamentais. Mais importante, não se mencionam os direitos das comunidades locais e indígenas. Em relação às mulheres, a Lei apenas faz uma referência à importância de sua participação, dentro dos “Princípios da estratégia Nacional para Implementar a Lei” (6), sem uma análise adequada das implicações que ela terá, principalmente para as mulheres.

Outro problema crucial decorrente do chamado “capital comunitário” descrito na lei está relacionado à propriedade. Como pergunta a Plataforma GMTMD: “Quem é dono?” As definições vagas sugerem que o “capital comunitário” pertence à comunidade. No entanto, o uso da palavra “capital” sugere a imersão do que é considerado comunitário em uma lógica de mercado cujo objetivo principal é o lucro e não os direitos. Além disso, tratar o “capital comunitário” como um tipo de “crédito de desenvolvimento sustentável” e como parte do “patrimônio do desenvolvimento sustentável” do Gabão, que está inscrito em um registro nacional, sugere que o “capital comunitário” seria administrado pelo Estado, e não pelas próprias comunidades.

Também muito preocupante é a proposta aparente de fazer com que os “créditos de desenvolvimento sustentável” sejam intercambiáveis em todo o território. Isso significaria que uma empresa pode assumir e degradar as terras tradicionais de uma comunidade e “compensar” essa ação comprando créditos, ou produzindo esses créditos ao construir uma escola para outra comunidade a 300 quilômetros dali? Se o “capital comunitário” for negociado por outros créditos, isso poderá implicar que as decisões sobre o “valor” de direitos, terras e recursos de uma comunidade para o registro nacional será apropriado pelos lobbiesgovernamentais e corporativos segundo interesses econômicos, prejudicando os direitos das comunidades. Não se sabe ao certo se a possibilidade de intercambiar créditos geograficamente se refere a regiões de um mesmo país ou de diferentes países. A “compensação” da degradação florestal no Gabão poderia ser feita com um projeto em Camarões, por exemplo?

Considerações finais

O governo do Gabão está esperando para gerar demanda para os “créditos de desenvolvimento sustentável” através dos relatórios de “avaliação de impacto da sustentabilidade” que as empresas precisam fazer ao solicitar a aprovação de um projeto (como uma mina, uma plantação ou qualquer atividade de “desenvolvimento sustentável”). Os relatórios avaliarão a quantidade de créditos considerados necessários para “compensar” os impactos sociais (sobre as comunidades) e os impactos ambientais da atividade industrial (sobre ecossistemas, estoques de carbono e biodiversidade). Segundo o governo, a “pegada de carbono” será uma das principais ferramentas para a aplicação da Lei, com vistas a ajudar empresas e instituições “em seu processo de tomada de decisões rumo a uma economia de baixo carbono”. Para isso, o governo está acompanhando empresas-piloto no cálculo de sua poluição de carbono. Entre elas, estão grandes varejistas, como Casino Mbolo e Cecado, minas, como COMILOG, empresas petrolíferas, como Total Gabão, Shell Gabão, Perenco, madeireiras, como Rougier e SNBG, e empresas de agronegócio, como OLAM e SIAT (7).

Esta abordagem afetará duplamente às comunidades: além do dano social e ambiental causado por empresas destrutivas, elas terão de enfrentar o impacto negativo causado pelo projeto de “compensação” – em especial onde esse tipo de “desenvolvimento sustentável” envolver a substituição de territórios e florestas por grandes monoculturas. A raiz do problema da destruição se oculta vendendo a ideia de que se poderia contabilizar todo esse dano, empacotá-lo em unidades separadas, e categorizar e intercambiar os danos. As chamadas políticas “sustentáveis”, que intensificam ainda mais o excesso de consumo e o excesso de produção, mantêm e expandem um sistema político e econômico opressivo e patriarcal. Elas agravam a poluição e a expropriação da terra, a violência e a opressão, principalmente para povos indígenas e mulheres. E como fica a autonomia das comunidades para decidir sobre suas próprias terras, práticas e vidas?

(1) Para ver mais informações sobre compensações de carbono e de biodiversidade, consulte: “El Mercado de Carbono: cómo funciona y por qué fracasa”, Carbon Trade Watch,http://www.carbontradewatch.org/publications/el-mercado-de-emisiones-como-funciona-y-por-que-fracasa.html e, “Árbol por Pez: La (i)lógica de vender compensaciones por pérdida de biodiversidad”,Carbon Trade Watch, http://www.carbontradewatch.org/downloads/publications/CTW_A_Tree_for_a_Fish-ES.pdf
(2) Plateforme GABÃO Ma Terre, Mon Droit, Documento de Posicionamento da Sociedade Civil gabonesa sobre a Lei nº 002/2014, acerca do rumo do desenvolvimento sustentável na República do Gabão, 24 de Janeiro de 2015.
(3) http://wrm.org.uy/actions-and-campaigns/letter-to-be-sent-to-the-president-of-gabon-to-express-opposition-to-the-creation-of-a-national-and-international-ecosystems-services-market/
(4)http://www.unog.ch/80256EDD006B9C2E/(httpNewsByYear_en)/FF512252F17C44E6C1257DEE0058B51D?OpenDocument
(5) http://wrm.org.uy/articles-from-the-wrm-bulletin/section3/gabon-new-study-warns-of-impacts-of-the-expansion-of-oil-palm-and-rubber-tree-plantations/
(6) Presidence de la Republique, Lei n. 002/2014 para o Desenvolvimento Sustentável na República Gabonesa
(7) Ver https://seors.unfccc.int/seors/attachments/get_attachment?code=EK33Y1EQDDFKDGLYHDAHVGO3JVHAF0Y9 ehttps://seors.unfccc.int/seors/attachments/get_attachment?code=X8AS9M9B9ALUZKIGOREOWS2OKT5863M3