Contestando um Pacífico “Azul”: oceanos e territórios costeiros sob cerco

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“Pare o crime no oceano. Diga não à mineração experimental no fundo do mar no Pacífico.” Foto: PANG

Governos e empresas transnacionais apoiadas por instituições financeiras multilaterais, juntamente com Nações Insulares do Pacífico, estão se apressando para dividir o oceano sob as narrativas do que chamam de Economia Azul, a fim de justificar sua exploração.

Potências globais, incluindo governos e grandes transnacionais apoiadas por instituições financeiras multilaterais, juntamente com Nações Insulares do Pacífico, estão correndo para dividir o oceano, sob as narrativas sustentáveis do que chamam de Economia Azul e Crescimento Azul, a fim de justificar sua exploração. Cada vez mais, os avanços tecnológicos tornam viável a exploração outrora impossível das profundezas do oceano. Isso permitirá que as empresas saqueiem recursos oceânicos, supostamente para garantir a segurança alimentar (com pesca industrial, fazendas de criação de camarão etc.) e obtenham minerais necessários para o desenvolvimento das chamadas tecnologia “verde” e energia renovável para economias globais do Norte e economias emergentes poderosas no sul, como a China.

Cobrindo aproximadamente 59 milhões de milhas quadradas (mais de 15 bilhões de hectares) e contendo mais da metade da água livre da Terra, o Pacífico é de longe a maior das bacias oceânicas do mundo e abriga os países Insulares do Pacífico e seus povos. (1) Para os povos indígenas das ilhas do Pacífico, o oceano inclui tanto terras costeiras quanto o oceano profundo. Para o povo do Pacífico, que tem uma relação espiritual com ele, industrializá-lo significa reformular, mais uma vez, o modo como o Oceano foi definido, passando da visão de seus antigos governantes coloniais (vasto, distante, inacessível, subdesenvolvido e subexplorado) ao de empresas transnacionais e instituições financeiras multilaterais. É preciso resistir a ambas as definições.

Os territórios oceânicos têm sido um pilar de comércio e atividades econômicas, e uma importante fonte de alimento, energia e meios de subsistência há séculos. (2) A ONU estima o valor econômico dos “recursos” costeiros e marinhos em 3 trilhões de dólares. (3) A OCDE sugere que a economia oceânica, que inclui pesca industrial e costeira, aquicultura, turismo e energia renovável, bem como novas áreas, incluindo mineração em alto mar e recursos genéticos, provavelmente venha a ultrapassar a economia global nos próximos 15 anos.

Além da avaliação econômica, os oceanos fornecem 50% de oxigênio atmosférico e absorvem 25% das emissões de CO2, e isso garante um planeta habitável. (4) Oceanos e litorais abrigam uma biodiversidade extraordinária e ecossistemas únicos. Recifes de coral e manguezais costeiros aliviam os impactos das tempestades e protegem as praias. As florestas costeiras fornecem habitats, alimentos e meios de subsistência a muitas comunidades nas ilhas do Pacífico.

Pelo menos 40% de nossos oceanos, no entanto, já estão muito poluídos e dão sinais de que sua saúde não vai bem. (5) Nas últimas décadas, à medida que o conhecimento científico aumenta, também vêm crescendo as preocupações sobre como gerenciar e conservar as áreas fora da jurisdição nacional. Os cientistas admitem que pouco conhecem as partes mais profundas do oceano, e que sabemos mais sobre as superfícies da lua, de Vênus e de Marte.

O conceito de Economia Azul, que surgiu da ideia mais ampla de crescimento verde, anuncia uma nova corrida para escavar o Pacífico, transformando-o em um espaço lotado e perturbado. Os líderes dos países do Pacífico são cortejados com ganhos econômicos que representam uma pequena fração do valor dos recursos oceânicos a ser extraído. Alguns governos das Ilhas do Pacífico, sem o consentimento de seus povos, já concederam licenças comerciais e de exploração sobre partes significativas de seus territórios para a mineração experimental no fundo do mar. (6) Essas explorações representam sérias ameaças ao oceano e aos territórios costeiros.

A percepção predominante, expressada por muitos pensadores e autores do Pacífico (7), é de que o fato de os Países Insulares do Pacífico terem superfícies pequenas os torna eternamente vulneráveis, carentes de poder e, portanto, dependentes das antigas potências coloniais, dos países industrializados ou qualquer outro com recursos técnicos, e de parceiros de desenvolvimento novos e emergentes, para sua sobrevivência de longo prazo. (8) No entanto, essa percepção enganosa não deve permitir que nossos territórios oceânicos sejam entregues, destruídos ou cedidos a interesses externos.

Um alerta sobre minerais do fundo do mar e as “riquezas inexploradas” do oceano

O esgotamento de minerais terrestres, com impactos devastadores associados a florestas e comunidades, juntamente com uma maior demanda por tecnologia (9) e infraestrutura “verdes”, deve fazer do oceano a próxima fronteira para a exploração de minerais como cobre, lítio, cobalto e nódulos de manganês, além de minerais raramente encontrados em minas terrestres. A exploração de minerais entre 400 e 6.000 metros abaixo do nível do mar deve ocorrer no Oceano Pacífico, no Oceano Índico e na Zona Clarion Clipperton. No total, a área coberta por licenças de exploração de minerais no fundo do mar é impressionante: mais de 1,3 milhão de quilômetros quadrados (cerca de 130 milhões de hectares).

No Pacífico, a mineração em alto mar é vista como um empreendimento iminente, e países como Ilhas Cook, Kiribati, Nauru, Papua-Nova Guiné e Tonga são considerados pioneiros. Apesar da natureza experimental da indústria, a exploração já começou nas águas territoriais desses países. Em 2012, Papua Nova-Guiné emitiu a primeira licença comercial do mundo, que deveria começar a ser explorada em 2019. No entanto, devido à falta de interesse dos investidores no projeto Nautilus Mineral Solwara, naquele país, em função dos enormes riscos e custos associados, a mineradora foi forçada a encerrar suas operações depois de ser excluída da Bolsa de Toronto.

A elaboração de um modelo de legislação para os países insulares patrocinado pela Comissão Europeia sinalizou a “prontidão” do Pacífico. (10) Previsivelmente, uma análise desse modelo jurídico constatou que ele se concentrava mais em garantir um regime de licenciamento claro e condições favoráveis ​​à indústria do que a defesa dos povos do Pacífico e seus ambientes (11).

Há muito tempo, a indústria afirma que nada vive no fundo do oceano, mas isso é falso. Essa afirmação de que a mineração em alto mar tem baixos riscos sociais e ambientais e garante um alto retorno ignora várias realidades pertinentes. Por exemplo, com base em evidências científicas, estamos começando a conhecer os impactos que a mineração terá no fundo do mar e em suas águas profundas, enquanto os impactos iniciais já são sentidos por territórios costeiros e povoados a menos de 30 km de alguns desses locais. Além disso, vários estudos concluíram que o valor econômico dos minerais é de natureza altamente especulativa devido às flutuações de preços.

Há evidências crescentes de que a mineração em alto mar representa uma grave ameaça ao equilíbrio vital das diferentes funções do planeta. A maioria dos estudos também descobriu que haverá pouca ou nenhuma recuperação da biodiversidade após o esgotamento das reservas minerais. Mais preocupante é que, considerando-se essas operações em escala industrial (em termos de tamanho, intensidade e duração), os resultados seriam devastadores e seus efeitos cobririam grandes áreas no fundo do oceano e além.

No Pacífico, as comunidades costeiras de Nova Irlanda e Nova Bretanha Oriental, em Papua-Nova Guiné, já estão sofrendo os impactos negativos da mineração e da perfuração exploratórias que ocorrem a distâncias entre 30 e 50 quilômetros de suas comunidades. Os moradores relataram um aumento na chegada de peixes mortos à praia, incluindo um número de criaturas do fundo do mar que são quentes ao toque, além de águas excessivamente poeirentas e escuras.

O papel da resistência dos povos do Pacífico

Em seu artigo Nosso mar de ilhas, o professor Epeli Hauófa, filósofo da região do Pacífico, afirmou que ninguém é melhor neste planeta para ser guardiãs do oceano do mundo do que as pessoas que o chamam de lar: “O nosso papel como guardiões na proteção e no desenvolvimento do nosso oceano não é, de forma alguma, uma tarefa pequena; é nada menos que uma grande contribuição para o bem-estar da humanidade, uma causa nobre e que vale a pena”.

A ironia não pode ser ignorada. Nesta era da mudança climática, o Povo do Pacífico, cuja contribuição para causá-la foi mínima e é reconhecido por já suportar uma parcela desproporcional dos efeitos, agora também enfrenta outro ataque de significado equivalente, se não maior.

É preciso resistir à mineração em alto mar. Em 2011, um coletivo, incluindo grupos feministas e comunitários, organizações não governamentais regionais e igrejas (12), organizou pesquisas e análises para entender melhor as implicações da exploração de minerais no fundo do mar para os povos do Pacífico e o oceano.

Em 2012, foram coletadas 8.000 assinaturas para alertar os Líderes do Fórum das Ilhas do Pacífico sobre a mineração em alto mar, enquanto, em 2014, a igreja luterana emitiu um abaixo-assinado representando mais de um milhão de seus membros, endereçado ao Governo de Papua-Nova Guiné, com relação às preocupações crescentes sobre os impactos dessa indústria.

Em Vanuatu, o coletivo, trabalhando em estreita colaboração com o Conselho de Igrejas de Vanuatu e o Vanuatu Kaljoral Senta (Centro Cultural), convenceu o governo a interromper a emissão de novas licenças depois da divulgação de que mais de 140 haviam sido emitidas sem conhecimento prévio do parlamento e muito menos dos guardiões do oceano. Globalmente, ativistas de Papua-Nova Guiné e Fiji fizeram um apelo no Brasil, na Cúpula Rio+20, em 2012, e na Europa, em 2014, para angariar apoio à proibição da mineração no leito do mar. Foram necessários três anos de esforços no sentido da articulação e da pressão com parceiros europeus antes que o Parlamento Europeu apoiasse uma moratória à mineração em alto mar, em 2017. Ao mesmo tempo, a república de Palau proibiu atividades comerciais, incluindo pesca e mineração.

Além disso, na recente reunião dos Líderes do Fórum das Ilhas do Pacífico, o governo de Fiji anunciou uma moratória de 10 anos nas atividades de mineração em alto mar. A medida foi apoiada pelos governos de Papua Nova Guiné e Vanuatu. Da mesma forma, o governo da Nova Zelândia rejeitou os pedidos de mineração em alto mar em suas águas territoriais, enquanto os governos do Território do Norte, na Austrália, e do Chile proíbem a mineração no fundo do mar.

Grande parte da mudança rumo a uma abordagem mais cautelosa foi resultado da resistência das comunidades locais, apoiada por um leque amplo e diverso de atores, incluindo cientistas, acadêmicos e organizações da sociedade civil relacionados ao tema.

Rede do Pacífico sobre Globalização (The Pacific Network on Globalisation - PANG), www.pang.org.fj

Observatório regional que promove o direito dos povos do Pacífico à autodeterminação. A rede PANG mobiliza movimentos e ativistas com base em pesquisas e análises substancias para promover uma agenda de desenvolvimento dos povos do Pacífico.

(1) Existem 26 países insulares no Pacífico, dos quais 16 são Estados soberanos, enquanto 8 ainda são territórios, incluindo territórios coloniais, em disputa, da França (Nova Caledônia, Polinésia Francesa, Wallis e Ilhas Futuna), da Indonésia (a disputada Papua Ocidental) e dos Estados Unidos (Guam, Havaí, CNMI, Samoa Americana). No total, esses países representam uma população de quase 20 milhões de pessoas.
(2) O oceano é a principal fonte de proteína para mais de 3 bilhões de pessoas (www.un.org/sustainabledevelopment/oceans/).
(3) Veja https://ec.europa.eu/maritimeaffairs/policy/blue_growth_en
(4) Veja http://enb.iisd.org/oceans/climate-platform/html/enbplus186num14e.html
(5) Veja www.undp.org/content/undp/en/home/sustainable-development-goals/goal-14-life-below-water.html
(6) Quase todos os Países Insulares do Pacífico, com exceção de Samoa e Palau, concederam licenças de exploração a empresas transnacionais, enquanto Papua-Nova Guiné é o primeiro país do mundo a dar uma licença comercial.
(7) Epeli Hauófa, Öur Sea of Islands, em A New Oceania: Rediscovering Our Sea of Islands, (org.) Eric Waddell, Vijay Naidu e Epeli Hauófa (1993), 2-17.
(8) http://fijisun.com.fj/2018/09/12/opinion-china-the-pacific-islands-and-the-wests-double-standards//
(9) A Copper Alliance afirma que cada telefone celular precisa de 0,02 kg de cobre; no caso do cobalto, estima-se que a Volkswagen precisará de pelo menos um terço de todo o suprimento global atual até 2025 para seus carros eficientes em energia; os geólogos sugerem que, se todos os carros europeus forem elétricos até 2040 (usando o Modelo 3 da Telsa), eles exigiriam 28 vezes mais cobalto do que o produzido atualmente.
(10) O Projeto SPC-UE para Minerais de Mar Profundo inclui 15 Países Insulares do Pacífico: Ilhas Cook, Estados Federados da Micronésia, Fiji, Kiribati, Ilhas Marshall, Nauru, Niue, Palau, Papua-Nova Guiné, Samoa, Ilhas Salomão, Timor Leste, Tonga, Tuvalu e Vanuatu. Veja o projeto SPC-EU DSM Minerals Deep Sea, Secretariado da Comunidade do Pacífico
(11) Blue Ocean Law (2016): An Assessment of the SPC Regional Legislative and Regulatory Framework for Deep Sea Minerals Exploration and Exploitation. Guam.
(12) Em 2012, Act Now! PNG; Bismarck Ramu Group (BRG); DAWN (Southern Feminist Group); Pacific Conference of Churches e Pacific Network on Globalisation começaram a se organizar e agir com relação ao problema. Veja atualizações sobre o papel da resistência dos Povos do Pacífico.