Os “serviços ambientais” na Constituição do Equador: uma forma de aprofundar a concentração de terras?

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ecuador consulta

Em fevereiro de 2023, o governo de Guillermo Lasso convocou uma Consulta Popular no Equador, com o objetivo de fazer algumas emendas à Constituição. Entre as mudanças propostas, havia uma pergunta que modificaria o Artigo 74 para incluir as compensações por serviços ambientais com caráter constitucional.

Nesse contexto, é bom destacar que a denominação de serviço ambiental atribuída às funções e aos ciclos da natureza – como a filtração da água em florestas e solos, o ciclo do carbono, a biodiversidade, a polinização realizada pelas abelhas, etc. – se deu a partir da lógica da economia capitalista. Assim, impôs-se à natureza o papel de prestadora de “serviços” ambientais, com a falácia de que dar a ela um valor econômico serviria para salvá-la. A ideia de precificar as funções e os ciclos da natureza foi muito bem recebida por agências da ONU, o Banco Mundial, indústrias e empresas poluidoras, ONGs conservacionistas, financistas, entre outros, que buscavam e continuam buscando novas formas de acumulação e lucro.

Por outro lado, quando se fala em compensações, faz-se referência à possibilidade de, a partir de uma determinada área, serem emitidos certificados (também chamados de “créditos de compensação”) que supostamente garantiriam que o “serviço” localizado naquele espaço está sendo protegido. Mas o que realmente está sendo protegido é a mercadoria que, no caso, são os certificados de compensação. A natureza acaba sendo transformada em unidades desconexas, fragmentadas, previsíveis, mensuráveis ​​e comparáveis ​​de “serviços ambientais”.

As compensações de emissões de dióxido de carbono são as mais difundidas, mas também existem compensações pela perda de biodiversidade e de fontes de água. Os certificados permitirão que quem os comprar contamine ou destrua de forma “equivalente” ao estabelecido no certificado. No caso do carbono, por exemplo, cada certificado permite que o poluidor emita uma tonelada de dióxido de carbono equivalente, além de poder obter uma imagem “verde” ou anunciar campanhas dizendo ser “neutro em carbono”.

A emenda constitucional que se buscava na Consulta Popular do Equador relativa aos serviços ambientais não será levada a cabo porque a maioria dos eleitores votou NÃO, mas essa tentativa do governo é um alerta sobre os interesses e as pressões das empresas para aprofundar as políticas de apropriação e mercantilização da natureza. O caso do Equador é emblemático, já que sua Constituição é um exemplo mundial do reconhecimento dos direitos da Natureza.

A Constituição de Montecristi e o que se tentou modificar

A Constituição de 2008 (chamada de Montecristi) foi o resultado de um amplo processo, liderado por lutas históricas e diversas no Equador. Essa Constituição, entre muitas outras coisas, pelo menos em seus enunciados, fortaleceu as capacidades do Estado, orientou a economia com critérios nacionais e sociais, estabeleceu um sistema tributário para redistribuir a riqueza e consagrou um item ao “Regime do Bem Viver” como paradigma alternativo e referência para as políticas públicas do país. É importante mencionar que o conceito de “Bem Viver” não nasce da Constituição de Montecristi, e sim vem de uma tradição e uma sabedoria milenares enraizadas nos povos andinos. Nesse sentido, a Constituição também denomina o Estado como Plurinacional.

Mas talvez o maior avanço, histórico e único no mundo, seja o reconhecimento da Natureza como sujeito de direitos (Art. 71-74), entre os quais o de ser defendida, e a proibição da apropriação de serviços ambientais. Como exemplo da força reivindicatória dessa inclusão, o Preâmbulo da Constituição começa assim: “Celebrando a natureza, a Pachamama, da qual fazemos parte e que é parte vital de nossa existência (...)”, o que situa no centro da análise a relação intrínseca entre humanos e não humanos.

O artigo 74, o qual se tentou modificar com a Consulta Popular, estabelece que: “(…) Os serviços ambientais não serão passíveis de apropriação; sua produção, prestação, uso e exploração serão regulamentados pelo Estado”.

A pergunta da Consulta Popular dizia “Você concorda que indivíduos, comunidades, povos e nacionalidades podem ser beneficiários de compensações devidamente regulamentadas pelo Estado, em função de seu apoio à geração de serviços ambientais, alterando a Constituição de acordo com o anexo 8?” (1) Além disso, a vitória do “sim” na Consulta teria concedido ao Estado a autoridade para definir “diretrizes e mecanismos de compensação que pessoas, comunidades, povos e nacionalidades recebem pelo apoio à sua geração.”

Os interesses por trás da Consulta Popular

Para entender as implicações dessa Consulta no contexto equatoriano, conversamos com Ivonne Yánez, fundadora da organização Acción Ecológica no Equador, ativista, feminista e pesquisadora, que também participa do Comitê Consultivo do WRM.

WRM: A Constituição já inclui a ideia de “serviços ambientais”, embora com o espírito de proteger esses “serviços” e impossibilitar sua apropriação. Você pode nos explicar, então, qual era o objetivo específico da emenda constitucional que se buscava com a Consulta Popular?

Ivonne: Como Acción Ecológica, somos contra o próprio conceito de serviços ambientais, pois sabemos que eles são uma invenção do capitalismo e que os primeiros surgiram nos Estados Unidos, por volta dos anos 70, para evitar o cumprimento das crescentes regulamentações ambientais.

No entanto, pelo menos o artigo 74 da Constituição equatoriana proíbe claramente sua apropriação. Com a mudança proposta na Consulta Popular, para incluir as compensações como direito constitucional, poderia facilmente ter sido iniciada a apropriação de serviços ambientais por empresas ou investidores privados. Sabemos que não pode haver compensações sem regime de propriedade entre quem as oferece, compra e vende.

Por outro lado, o interesse do governo por trás da emenda era posicionar o Equador como um provedor de serviços ambientais e sinalizar aos comerciantes de carbono que poderia haver um livre mercado de compensação no país, dando rédea solta a todo o tipo de negócios.  E mais agora, com ativos digitais, tokens ou valores que podem estar relacionados ao mercado de carbono e serviços ambientais. Os projetos de carbono digital se aproveitam de terras, territórios, florestas, rios, biodiversidade e culturas dos povos indígenas para fazer negócios pouco claros e de alto risco. (2)

WRM: Os Pagamentos por Serviços Ambientais já não são permitidos no Equador, com programas como o Sociobosque e com a introdução de projetos de carbono? Se é assim, por que foi tentada essa reforma da Constituição?

De fato, no Equador já existe a figura do Pagamento por Serviços Ambientais, por exemplo, no Código Orgânico Ambiental e seus regulamentos, nos programas SocioBosque e ProAmazonia – que incluem o REDD+ – ou no Programa Equador Carbono Zero. (3)

Todas essas políticas públicas já incorporam o incentivo ou a prestação de serviços ambientais, bem como o reconhecimento econômico ou da imagem verde das empresas. Nesse sentido, a pergunta era desnecessária. No entanto, pudemos ver como, nos últimos meses, houve uma grande pressão das empresas de comércio de compensação de carbono para alterar o artigo 74, que elas consideravam como um cadeado que não lhes permitia fazer todos os seus negócios.

É claro que o objetivo da questão relacionada aos serviços ambientais era, por um lado, tentar aumentar a popularidade do governo, que está no chão. E, por outro, permitir que os mercados voluntários de compensação de carbono pudessem se estabelecer no país através de uma posterior reforma da regulamentação ambiental que permita realmente a apropriação de serviços ambientais. Mesmo sem defender a ideia de serviços ambientais, devemos ao menos preservar o artigo da Constituição que restringe sua disseminação no Equador, que vêm a ser um recurso estratégico cuja propriedade agora está nas mãos do Estado.

WRM: Que implicações teria a aprovação da compensação por serviços ambientais, considerando o processo e os acordos da Constituição de 2008?

Na Consulta Popular, o “Não” venceu na pergunta 8, relacionada aos serviços ambientais. Em algumas províncias, por até 80%. No entanto, isso precisa ser analisado com um pouco mais de cuidado. As organizações indígenas amazônicas se opõem a essa pergunta porque, na verdade, defendem a ideia de que os serviços ambientais em seus territórios são propriedade dos Povos Indígenas. E que, sem intervenção do Estado, podem negociar Pagamentos por Serviços Ambientais diretamente com quem quiserem.

Nesse caso, para as organizações indígenas amazônicas, a pergunta que incluía também o tema de que o Estado seria o administrador implicava uma maior centralidade do controle dos serviços ambientais, o que talvez afetasse os negócios que elas poderiam fazer de forma autônoma, sem ter que registar tudo no Estado.

Por fim, o fato de o “não” ter vencido não significa que o governo não queira fazer todas as mudanças regulatórias secundárias para aprofundar a ideia de serviços ambientais e, portanto, seu comércio no Equador. Continuaremos vigilantes e denunciando o que eles significam para os povos e para o planeta.


(1) Veja as perguntas e disposições da Consulta Popular, incluindo o anexo 8
(2) Acción Ecológica, Amenazas del Capitalismo Digital: el caso de One Amazon.
(3) TOs programas SocioBosque e ProAmazonia no Equador buscam se inserir nos planos de REDD+ (Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal), permitindo que o carbono das florestas dos povos seja negociado nos mercados de carbono e de outros serviços ambientais. Veja mais em Acción Ecológica, “De Pacha Mama Sagrada A Mercancía Privada”, e WRM, 15 anos de REDD: um esquema corrompido em sua essência; O “Programa Equador Carbono Zero” (PECC) é um programa ambiental de mercado que configura a compra e venda de certificados de “reduções de carbono” sob o princípio de pagar para poluir. Para isso, será criado um portfólio de compensações e, além disso, a marca “Punto Verde”. Veja mais em Acción Ecológica, “Ecuador Carbono Cero = ¿Permisos para contaminar?”.