Por que rejeitar a privatização de terras de ocupação tradicional e posse coletivo?

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Mulheres em Port Loko, Serra Leoa, 2017

Para os capitalistas, os sistemas de ocupação tradicional e posse coletivo da terra são obstáculos à geração de riqueza e à acumulação de lucros. Tem havido uma forte pressão para que se formalizem os direitos de propriedade privada à terra, facilitando sua venda e seu arrendamento para uso comercial. Este artigo mostra o motivo pelo qual essa pressão deve parar agora!

A maior parte das terras do mundo ainda é administrada por comunidades sob sistemas de ocupação tradicional e posse coletivo. Sejam áreas públicas legalmente reconhecidas ou terras tradicionalmente ocupadas, o sustento de bilhões de pessoas depende de florestas ou savanas, terras agrícolas ou pastagens manejadas de forma comunitária. Essa organização coletiva da vida é vista pelos capitalistas como um obstáculo à criação de riqueza individual e à acumulação de lucros.

Instituições multilaterais, como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI), têm incentivado (e pressionado) governos, principalmente no Sul global, a adotarem a noção de propriedade privada da terra, que já predomina nas sociedades ocidentais. Eles têm sido atores centrais no esforço para formalizar os direitos de propriedade privada da terra e, assim, facilitar sua venda e seu arrendamento para uso comercial. Eles argumentam que é necessário potencializar o chamado “uso produtivo” da terra e “desbloquear seu valor”. No entanto, o valor e o uso a que se referem estão relacionados apenas ao valor econômico para a geração de mais lucros, eliminando todos os outros valores e usos que as comunidades têm e que estão relacionados aos seus territórios. O resultado esperado é o desmantelamento dos sistemas de ocupação tradicional e posse coletiva.

Embora a posse precária da terra continue sendo um problema alarmante em todo o mundo, a privatização não oferece a segurança e a estabilidade de que as comunidades precisam. Em vez disso, é apenas outra via para mais colonização e exploração de suas terras e florestas em benefício de interesses privados e grandes empresas multinacionais.

Seja por meio da pressão por títulos de terra individuais ou pela disponibilização de terras de ocupação tradicional e posse coletivo para investimento privado, projetos de “desenvolvimento”, compensação de carbono ou áreas naturais protegidas, esses esforços para mercantilizar a terra representam ameaças imediatas a bilhões de pessoas. Os mecanismos de posse coletivo e ocupação tradicional da terra constituem sistemas sociais e econômicos e códigos jurídicos essenciais, que governam vidas e sociedades inteiras em todo o mundo.

O Instituto Oakland divulgou um documento desconstruindo seis mitos fundamentais usados ​​por governos, bancos e instituições multilaterais para justificar a privatização de terras.

Mito 1: A privatização de terras é necessária para atrair investimentos privados
FATO: Investimentos em produção, processamento e comercialização podem melhorar os meios de subsistência das comunidades sem alienar suas terras

Atrair investimento privado em combustíveis fósseis ou extração de minérios, ou na expansão de plantações industriais ou agricultura, não é um paradigma de desenvolvimento que beneficie as comunidades. Existem muitos outros caminhos que não requerem a privatização ou o despejo das comunidades nem a destruição dos sistemas tradicionais de uso da terra.

No Brasil, por exemplo, entre 2004 e 2015, a produção agrícola aumentou e o desmatamento caiu quando os direitos à terra e aos recursos foram constitucionalmente concedidos aos povos indígenas e comunidades, respeitando seus sistemas de ocupação tradicional, junto a uma forte rede de áreas protegidas, planejamento do uso da terra e fiscalização. Além disso, a experiência brasileira mostra que a melhor forma de proteger a floresta é reconhecer as terras tradicionalmente ocupadas  e, assim, demarcar as terras e florestas das quais os povos indígenas dependem para sua sobrevivência física e cultural. No entanto, o atual governo Bolsonaro, de extrema direita, pressiona pela privatização das florestas (ver leituras recomendadas neste boletim).

Mito 2: Títulos privados aumentam o acesso a crédito e empréstimos
FATO: Quando terras com títulos de propriedade são usadas como garantia para empréstimos, os bancos podem tomá-las se os agricultores tiverem uma safra reduzida e não conseguirem pagar.

A teoria que tem sido amplamente usada para justificar projetos de titulação de terras em todo o mundo é que, com um título privado, os proprietários poderiam usar suas terras como garantia para pedir dinheiro emprestado aos bancos e poder investir e escapar da pobreza. No entanto, a pesquisa mostra que, quando famílias com recursos limitados recebem um título privado, os bancos continuam pouco dispostos a lhes oferecer crédito ou empréstimos. Além disso, o uso de terras tituladas como garantia possibilita que os bancos se apropriem dessas terras legalmente se os agricultores tiverem uma safra reduzida e não conseguirem pagar o empréstimo ou hipoteca – um fenômeno muito comum em meio à instabilidade climática de hoje.

Mito 3: Privatizar a terra acelera o desenvolvimento
FATO: Historicamente, foram raros os esforços para converter sistemas de ocupação tradicional e posse coletivo em propriedade privada sem perdas sociais e econômicos consideráveis

Há poucas evidências de que a substituição dos sistemas de ocupação tradicional ou comunal de posse por títulos privados leve ao desenvolvimento. Em Ruanda, por exemplo, as tentativas de transformar sistemas complexos de posse em um único modelo baseado em títulos privados levaram a expropriação, vendas de terras em momentos de dificuldades e concentração da propriedade. Iniciativas semelhantes para “garantir” os direitos à terra por meio da titulação também saíram pela culatra no Brasil, onde um programa do Banco Mundial no estado do Piauí ignorou completamente as formas comunais de posse da terra e implementou um sistema de títulos individuais que abriu caminho para a “legalização” da grilagem e para o risco de expropriação de milhares de pessoas. O impacto foi tão desastroso que o Ministério Público solicitou ao Banco a suspensão do projeto. Da mesma forma, na Guatemala, um projeto de administração de terras patrocinado pelo Banco Mundial resultou na perda das terras de comunidades indígenas em Alta Verapaz para empresas de óleo de dendê.

Mito 4: Os mercados tornam o acesso à terra mais equitativo
FATO: Quando a terra nada mais é do que uma mercadoria, as empresas podem comprar os camponeses e os excluir do mercado
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A “criação” de mercados de terras tem consolidado, repetidas vezes, as desigualdades existentes no acesso à terra. Na África do Sul, décadas de colonialismo e apartheid concentraram enormemente a terra nas mãos da minoria branca. O apartheid chegou ao fim em 1994, mas mais de 25 anos de reforma agrária baseada no mercado não conseguiram redistribuir a terra, já que 72% das terras agrícolas privadas do país permanecem nas mãos dos brancos, que representam apenas 9% da população.

Dentro de um sistema de mercado, em que a terra e as florestas nada mais são do que mercadorias, grandes empresas e indivíduos ricos podem comprar os pequenos agricultores e as populações que dependem da floresta, excluindo-os do mercado. Isso resultou em aumento de pessoas sem terra e na concentração de terras nas mãos de poucos, já que a diminuição do tamanho médio das propriedades no Sul Global coincidiu com o crescimento de megafazendas que podem ocupar dezenas de milhares de hectares. Globalmente, o 1% das fazendas maiores agora opera mais de 70% das terras agrícolas do mundo. No Sul da Ásia e na América Latina, os 10% mais ricos entre os proprietários de terras possuem aproximadamente 75% de todas as terras agrícolas, enquanto os 50% mais pobres possuem menos de 2%.

Mito 5: Os sistemas  tradicionais não proporcionam segurança de posse
FATO: Pesquisas mostraram que o reconhecimento dos direitos coletivos é mais eficaz do que a titulação individual e que a terra de ocupação tradicional e posse coletivo provou ser “altamente resiliente, contínua e flexível”.

Muitas vezes, a privatização da terra é promovida disseminando-se a falsa informação de que os sistemas de ocupação tradicional e de posse coletivo não conseguem proporcionar segurança. No entanto, as evidências que refutam esse mito são abundantes há décadas. Os primeiros perfis de posse da terra traçados pela USAID em 1986 observavam: “Os países africanos com índices de produção relativamente bons nos últimos 20 anos chegaram a eles dentro de um conjunto bastante diverso de arranjos de posse, nos quais se destaca a posse coletivo e ocupação tradicional”. Em 2011, a Força-Tarefa da União Europeia sobre Terras declarou: “A titulação de terras nem sempre é a melhor maneira de aumentar a segurança da posse e nem leva automaticamente a mais investimento e produtividade. Em muitos lugares, a terra é mantida por meios não escritos e tradicionais, mas não está sujeita à insegurança.”

Mito 6: Reformas agrárias centradas nos interesses dos camponeses
FATO: A privatização da terra visa servir aos lucros das empresas em detrimento do combate à pobreza ou da melhoria do sustento

Do Brasil às Filipinas e à África do Sul, as pessoas estão clamando por reforma agrária para redistribuir equitativamente a terra confiscada sob pretextos errados e acumulada durante a época colonial. No entanto, os recentes programas de reforma agrária centrados na titulação privada não atendem a essas demandas urgentes. Está claro que a privatização da terra incentivada por instituições financeiras e alguns países ocidentais não visa combater a pobreza nem melhorar o sustento. O processo de transição dos sistemas consuetudinários locais – que geralmente oferecem segurança de posse – a terras com títulos privados provavelmente resultará em pessoas sem terra e concentração de terras.

Este é um resumo da publicação “Esta é a nossa terra. Por que rejeitar a privatização de terras de ocupação tradicional e posse coletivo”, do Instituto Oakland. Para obter as informações e referências completas, acesse a publicação aqui.