Uma lista (inacabada) de conceitos que matam florestas

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A linguagem nunca é neutra. Certos conceitos têm sido usados historicamente para dominar pessoas e territórios. Este artigo destaca alguns desses conceitos, relacionados a florestas, que costumam ser apresentados como algo positivo, mas, na realidade, sirvam a interesses econômicos que as prejudicam e, portanto, prejudicam as comunidades que dependem das florestas.

A linguagem e as palavras são campos em disputa na luta política. As escolhas e interpretações pelas quais optamos podem expor visões muito profundas e essencialmente diferentes sobre como ver o mundo, entendê-lo, posicionar-se diante dele e se relacionar com ele. A linguagem nunca é neutra e certos conceitos têm sido usados, ao longo da história, para dominar pessoas e territórios. Seus sentidos e usos estão em constante transformação em relação aos diversos conflitos, forças e interesses políticos.

Neste boletim, o WRM reflete sobre a conexão entre linguagem, desmatamento e conceitos geralmente apresentados como positivos e necessários do ponto de vista ambiental e social, mas que, na verdade, tendem a servir aos interesses empresariais de acumulação de lucros enquanto dominam e prejudicam as comunidades, bem como as florestas e os territórios dos quais essas comunidades dependem.

Esta lista de conceitos é um trabalho em construção, está longe de ser acabada. Seu objetivo é alertar nossos leitores sobre os sentidos e usos desses conceitos, e os interesses que ocultam, e resumir as razões pelas quais cada um representa uma contribuição para a destruição das florestas.

Manejo Florestal Sustentável

O Manejo Florestal Sustentável foi introduzido no final dos anos 80 como uma suposta solução para o desmatamento da floresta tropical causado pela extração industrial de madeira. A Extração Seletiva de Madeira foi incentivada como uma estratégia fundamental para obter benefícios econômicos sem comprometer a estrutura dinâmica e a sobrevivência da floresta. A ideia ganhou o apoio de empresas madeireiras, instituições financeiras multilaterais – como o Banco Mundial – e grandes ONGs de conservação.. No entanto, na prática, a extração industrial – “seletiva” ou não – provou ser uma atividade inerentemente destrutiva, que, em ultima instancia,  mata as florestas. Não é de surpreender que a promessa do Manejo Florestal Sustentável não tenha sido cumprida. Apesar do aumento das áreas sob esse regime nas florestas tropicais do mundo, o desmatamento também cresceu.

Concessões para exploração de madeira: base de uma indústria ou controle político?  (Boletim 217 do WRM, agosto de 2015)

O Manejo Florestal Comunitário é uma subcategoria do Manejo Florestal Sustentável e fez com que o conceito soa ainda mais otimista. No entanto, conversas com membros de comunidades que foram pressionados a participar de um chamado esquema de Manejo Florestal Comunitário revelaram como a atividade de extração de madeira os levou a alterar seu modo de vida, que se baseava em produtos florestais não madeireiros e passou a depender da extração de madeira de alto valor comercial. Como a destruição ocorre de forma bem mais lenta, as comunidades podem ficar sabendo o quanto essa atividade é destrutiva para a floresta apenas depois de um período significativo de tempo. Embora o conceito implica que essa forma de extração de madeira seja comandada pela comunidade, quem está à frente desse modo empresarial são engenheiros florestais externos, e os benefícios obtidos são muito maior para as madeireiras e consultorias do que para as comunidades.

Vozes e comunidades locais no Acre denunciam violações ao manejo sustentável de base comunitária (Boletim 197 do WRM, dezembro de 2013)

Repensando o manejo florestal de base comunitária na Bacia do Congo (em inglês)  (Rainforest Foundation UK, novembro de 2014)

Áreas protegidas

As Áreas Protegidas ou de Conservação não protegem nem conservam as florestas; elas as matam porque geralmente invadem os territórios dos povos da floresta, muitas vezes de forma violenta. Ao ficar sem as pessoas que vivem com ela e a defendem há milhares de anos, a floresta tende a ser destruída ou se deteriorar. As empresas podem entrar nela e explorar ela com mais facilidade porque as comunidades não estão mais nela. Há muitos exemplos onde áreas supostamente protegidas acabaram sendo invadidas por projetos extrativos. Além disso, quando as florestas são transformadas em áreas de conservação, os regimes naturais de fogo e outras características passam a correr risco. Por quê? Porque, historicamente, as comunidades florestais e seus conhecimentos tradicionais têm sustentado e enriquecido a diversidade de habitats nas florestas. A maioria dos tipos de Áreas Protegidas proíbe as pessoas que vivem dentro delas e mantêm seus meios de subsistência e práticas ancestrais de usar e manejar essas florestas.

Fogo bom, fogo mau, quem decide? Uma reflexão sobre o fogo e as florestas  (Boletim 238 do WRM, junho-julho de 2018)

As compensações ambientais no Panamá: uma estratégia que abre áreas protegidas a mineração  (Boletim 232 do WRM, julho-agosto de 2018)

As Áreas Protegidas foram criadas em base de crenças surgidas nos Estados Unidos, no final do século XIX, para preservar áreas “intactas” de “natureza selvagem” – sem nenhuma presença humana, principalmente para praticar caça de elite e desfrutar da beleza cênica. Essa ideia colonial de Conservação, que separa “natureza” e “seres humanos”, também facilitou a divisão das florestas em áreas de concessão para diferentes fins: enquanto algumas áreas devem ser “preservadas” sem pessoas, outras devem ser destruídas pelos interesses de lucro das empresas. De uma forma ou de outra, as ONGs conservacionistas estão envolvidas na maioria das Áreas Protegidas, geralmente numa aliança com empresas que estão causando desmatamento em outros lugares.

ONGs Conservacionistas: de quem são os interesses que elas realmente protegem?  (Boletim 242 do WRM, janeiro-fevereiro de 2019)

Restauração da paisagem

Essas palavras são usadas em conjunto para expressar um interesse político muito específico. Restauração geralmente significa plantar árvores, criando plantações industriais de monoculturas. Em conferências internacionais e regionais, milhões de hectares foram prometidos para projetos de restauração, como uma suposta solução para a crise climática e para deter a perda de florestas. Essas promessas persistem, apesar dos impactos negativos bem documentados das plantações de monocultura na prática. O que piora esse impacto é que aquilo que os defensores da Restauração chamam de Paisagem, os povos da floresta chamam de Território. A palavra Território não deixa dúvidas de que a terra em questão é muito mais que uma paisagem geográfica. Território é identidade; é um espaço para a vida, moldado pelas complexas interações entre comunidades humanas e não humanas ao longo do tempo. Usar o conceito Paisagens, por sua vez, facilita muito a criação da ilusão sobre áreas vazias, subutilizadas ou degradadas, que possam ser disponibilizadas para a Restauração. Estudos acadêmicos e iniciativas globais e regionais têm afirmado que existem milhões de hectares de terra “disponíveis” para a Restauração. Na realidade, essa terra já está sendo usada, e é provável que a restauração retire de seus ocupantes o controle sobre o uso dessa terra, à qual chamam de Território.

Algumas das principais iniciativas para expandir os monocultivos de árvores na América Latina, na África e na Ásia  (Boletim 228 do WRM, janeiro de 2018)

Extração de madeira, dendê, mineração, combustíveis fósseis e o agronegócio estão mudando os nomes de parte de suas atividades, passando a chamá-las de Restauração. Com essa imagem “mais verde”, eles não apenas podem continuar suas operações, mas também passam a ser vistos como parte da “solução” para o desmatamento e a degradação florestal. Assim, a restauração também mata florestas porque considere as plantações industriais como algo positivo e limpa a imagem das empresas que estão impulsionando o desmatamento.

“A alegação de que a restauração global de árvores é a solução mais eficaz que temos para a mudança climática é simplesmente incorreta do ponto de vista científico e perigosamente enganosa” (em inglês) (REDD-Monitor, outubro de 2019)

Certificação

“Continuem comprando!” Essa é a mensagem promovida pelos sistemas de certificação. Sempre que uma commodity industrial ou agrícola adquire uma imagem negativa, em pouco tempo surge uma iniciativa de certificação voluntária para garantir que suas atividades sejam “sustentáveis” de acordo com seus próprios indicadores. Os esquemas de certificação matam as florestas porque legitimam a expansão dos fatores que impulsionem o desmatamento.

A lavagem verde continua: o FSC certifica plantações industriais de árvores como se fossem florestas e a RSPO certifica plantações de dendezeiros como se fossem sustentáveis  (Boletim 233 do WRM, setembro de 2017)

As empresas escolhem cuidadosamente os mercados aos quais fornecer com produtos certificados: procuram aqueles onde os consumidores desejam comprar de acordo com suas “preocupações éticas” e, portanto, acreditam que os selos de certificação são um “seguro” que garante que esses produtos foram produzidos ou extraídos usando práticas “sustentáveis”. Ao incentivar esses consumidores a continuar comprando, os selos estimulam o consumo, em vez de reduzi-lo. Portanto, esses selos impulsionam a expansão do controle que as empresas têm sobre uma quantidade ainda maior de terras comunitárias. Eles também não conseguem resolver conflitos entre as comunidades e as empresas que se apossaram de seus territórios. É importante observar que nenhum esquema de certificação exclui a expansão, basicamente para que sempre possam certificar mais áreas. Como tal, são uma parte fundamental do comércio de commodities industriais de exportação.

Esquemas de certificação incentivam concentração de terras, violência e destruição (Boletim 240 do WRM, outubro de 2018)

Impactos das plantações industriais de dendê (palma) na Indonésia e a experiência com a RSPO  (Boletim 201 do WRM, abril de 2014)

REDD: Reduzindo Emissões de Desmatamento e Degradação Florestal

A partir de 2005, o REDD foi o mecanismo internacional dominante na política florestal e desde a sua introdução, o conceito tem sido redefinido constantemente: de REDD a REDD+ (incluindo Manejo Florestal Sustentável, Reflorestamento e Áreas de Conservação), e depois a REDD+ de paisagem e jurisdicional. Algumas pessoas nem usam mais o termo REDD+, referindo-se a esquemas de pagamento “com base em desempenho” ou “com base em resultados”, ou ainda “de restauração do ecossistema”.

REDD+: Um esquema podre em sua essência  (Boletim 245 do WRM, setembro de 2019)

Como o nome sugere, este termo refere a reduzir as emissões resultantes do desmatamento. Porém, 14 anos depois, os defensores ainda não conseguem mostrar nenhuma evidencia convincente de que o REDD+ realmente reduziu o desmatamento. Pelo contrário, o REDD+ na verdade é um conceito que destrói a floresta e causa danos aos povos da floresta. Isso porque, como mecanismo de compensação de carbono, faz lavagem verde em empresas responsáveis por altos níveis de poluição e degradação e destruição de florestas, , por exemplo, nos setores de aviação, commodities alimentícias globais e mineração. Também promoveu a ideia de que as florestas são Sumidouros de Carbono, reduzindo seus ciclos e funções complexos e inter-relacionados ao armazenamento de carbono. O REDD+ desvia a atenção das causas reais do desmatamento e evita que se implementem políticas e ações mais adequadas para deter o desmatamento.

O que as florestas têm a ver com a mudança climática, os mercados de carbono e o REDD+? Um kit de ferramentas para ativistas comunitários  (WRM, 2017)

O REDD+ não se originou das comunidades e seus expoentes tendem a atribuir a culpa pelo desmatamento nas práticas agrícolas dos camponeses e povos da floresta, ao mesmo tempo em que não enfrenta as causas do desmatamento em grande escala. A maioria das atividades de REDD+ impõe restrições, muitas vezes severas, ao uso comunitário das florestas. Agricultura itinerante, coleta e outras atividades de subsistência geralmente são proibidas nas áreas de REDD+, e as restrições costumam ser aplicadas com o apoio de guardas armados. Enquanto isso, a destruição das florestas pelas empresas continua sem ser impedida pelo REDD+.

REDD: uma coleção de conflitos, contradições e mentiras (WRM, 2014)

Compensação

A compensação (“Offsetting”) é um conceito que vem se infiltrando nas negociações da ONU relacionadas às florestas e ao clima e em muitos programas e atividades internacionais. Para entender a lógica por trás da compensação, seja ela ligada a biodiversidade, carbono, água ou algo semelhante, é importante ter em mente o seguinte: A compensação destrói florestas porque permite que o modelo econômico dominante – dependente de combustíveis fósseis – continue prosperando e se expandindo. Em vez de buscar interromper a destruição de territórios e florestas, a compensação só existe se houver mais destruição – que precisa ser “compensada” em outro lugar. Ela se baseia na ideia simplista de que dois locais podem ser “equivalentes”, sem considerar todas as inter-relações, a diversidade e a singularidade de cada local no tempo e no espaço.

Comércio de Serviços Ecossistêmicos: quando o pagamento por serviços ambientais dá uma licença para destruir (WRM, 2014)

Destruo aqui e destruo lá: as compensações por perda de biodiversidade como dupla exploração (Boletim 232 do WRM, julho-agosto de 2017)

Destruição Regulada: como a Compensação da Biodiversidade permite a destruição ambiental (em inglês) (Amigos da Terra Internacional)

A lógica por trás da Compensação (offsetting) também está sendo aplicada a programas em que essa palavra não aparece, como o Desmatamento Líquido Zero. Mas, por trás do novo nome, persiste a mesma lógica da Compensação. Os compromissos das empresas com Desmatamento Líquido Zero parecem maravilhosos, mas a palavra Líquido faz toda a diferença. Desmatamento Líquido Zero significa que o desmatamento pode acontecer e se podem destruir florestas, desde que a área florestal total dentro de uma determinada geografia permaneça inalterada. Isso significa que uma empresa de plantação de dendezeiros, por exemplo, tem permissão para destruir florestas, desde que “compense” essa destruição conservando, em outros lugares, uma floresta “comparável” em termos de biodiversidade. Tudo o que a empresa precisa fazer é convencer de que, sem o projeto de “compensação”, essa floresta estaria em risco de destruição.

A OLAM Palm Gabão quer usar a Definição de Florestas para implementar sua promessa de “Desmatamento Zero” (Boletim 245 do WRM, setembro de 2019)

Soluções naturais para o clima (também chamadas de soluções baseadas na natureza)

Este é o mais recente conceito incentivado pela indústria de combustíveis fósseis, de mãos dadas com ONGs conservacionistas. Seu objetivo:  garantir que seu histórico de poluição e desastres socioambientais não entre na pauta das negociações climáticas. Após 14 anos de fracasso na redução do desmatamento, os mesmos defensores do REDD+ estão reivindicando uma nova solução, agora chamada de Soluções Naturais para o Clima. A lógica continua sendo a mesma de conceitos, como o REDD+, que já fracassaram, a Compensação. Aproximadamente três quartos das atividades atualmente rotuladas como Soluções Naturais para o Clima são plantio de árvores (plantações industriais) ou restauração florestal (áreas de conservação).

Esse é um conceito que leva a mais destruição de florestas porque rebatiza antigas soluções falsas, como Compensação e REDD+. Assim, as Soluções Naturais para o Clima não enfrentarão os fatores que impulsionem o desmatamento enquanto desviam a atenção da necessidade urgente de deixar combustíveis fósseis no solo.

Soluções Naturais para o Clima (em inglês) (REDD-Monitor)

Lançado na COP25, a expressão Mercados para as Soluções Naturais para o Clima, da IETA, significa lavagem verde da indústria do petróleo (em inglês)  (REDD-Monitor, dezembro de 2019)

Salvaguardas ou diretrizes voluntárias

Empresas, bancos, agências de financiamento e ONGs conservacionistas promovem Salvaguardas ou Diretrizes Voluntárias (para as chamadas melhores práticas) como uma ferramenta para evitar a regulamentação por parte do Estado. Com a ajuda dessas salvaguardas, prometem se regular voluntariamente, com base em Padrões, Diretrizes ou Indicadores elaborados por eles próprios. Sem nenhuma base legal, esses Padrões Voluntários dão a impressão de que a indústria é regulamentada, que as coisas são “seguras” e que algo está sendo feito para “melhorar” as atividades industriais. Salvaguardas ou diretrizes voluntárias matam as florestas porque permitem que atividades destrutivas continuem e se expandam. Elas dividem comunidades, enfraquecem a resistência e permitem que os responsáveis pelo desmatamento e a apropriação de terras operam de forma impune.

Honduras e a Lei de Consulta: uma armadilha que busca o avanço do capitalismo nos territórios indígenas (Boletim 234 do WRM, novembro de 2017)

As Salvaguardas e Diretrizes Voluntárias se tornaram parte integral das “listas de pontos a serem verificados” usadas por empresas e bancos. Elas abriram as portas para as empresas continuarem seus negócios, mesmo que isso cause a destruição ambiental e social que os bancos alegam não financiar e as empresas afirmam não mais causar. O Banco Mundial, por exemplo, tem suas próprias salvaguardas e seus padrões sociais e ambientais para projetos que financia. Porém, como eles são voluntários, o Banco os revisou e os enfraqueceu ao longo do tempo, para flexibilizar ainda mais os “requisitos” necessários para investir em áreas florestais.

O desenvolvimento, a atualização e o monitoramento dessas salvaguardas e normas se tornaram um negócio em expansão para empresas de consultoria.

Salvaguardando o investimento: salvaguardas para REDD+, mulheres e povos indígenas  (Boletim 211 do WRM, fevereiro de 2015)

Florestas plantadas

A expressão Florestas plantadas representa uma contradição, pois só se pode plantar uma árvore, não uma floresta. Esse conceito é baseado na definição de florestas da FAO e as empresas de monocultura industrial de árvores são as maiores beneficiárias desse conceito. A definição da FAO reduz uma floresta a qualquer área coberta por árvores, deixando de lado outras formas de vida, bem como a diversidade biológica, cíclica e cultural que define uma floresta em relação a sua interconexão permanente com as comunidades que dependem dela. As estatísticas florestais dos países consideram essas plantações de monoculturas industriais como florestas, apesar dos impactos sociais e ambientais bem documentados que elas têm causado em todo o mundo.

Definição de floresta (WRM)

A definição de floresta é uma questão altamente política e tem sérias consequências sociais e ambientais para as comunidades que dependem das florestas. A definição da FAO continua sendo a mais usada, e serve de referência para definições nacionais em todo o mundo. É também a referência em fóruns internacionais, como as negociações climáticas da ONU. O Acordo de Paris, por exemplo, adota essa definição e, portanto, promove monoculturas industriais de árvores sob o disfarce da imagem positiva das florestas.

Lutas locais contra as plantações (WRM)

(Para mais informações, visite nosso site: http://www.wrm.org.uy/pt)