Uma transição verde ou uma expansão da extração?

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Este boletim destaca as ameaças envolvidas na chamada “transição energética” e expõe seu segredo sujo, que envolve a expansão exponencial da mineração no Sul global como consequência da enorme demanda por energia “verde”.

Muito já se disse sobre a chamada “transição energética” rumo a emissão zero de carbono. A crescente pressão para enfrentar os graves impactos climáticos da queima de petróleo, carvão e gás natural levou mais de 70 cidades e inúmeras companhias e redes empresariais a prometer “neutralidade de carbono”. Mas o que isso significa?

Em poucas palavras, significa que, por um lado, as emissões de dióxido de carbono representadas por essas cidades ou empresas seriam objeto de “compensação” em projetos implementados em outros lugares (por exemplo, plantação de árvores em grande escala). O WRM já escreveu bastante sobre essa falsa solução e as muitas ameaças que ela representa para o clima, os ambientes locais e os povos que dependem das florestas. Por outro lado, as promessas de emissão zero também implicam que muitos setores da economia, como transporte de pessoas ou energia doméstica, recorram cada vez mais às chamadas energias renováveis, às vezes também chamadas de “verdes” ou “limpas”.

Este boletim visa refletir sobre as ameaças envolvidas nessa transição para energias “verdes” ou “limpas”. Antes de tudo, a transição não se baseia na redução significativa da produção e do consumo maciços de energia por uma minoria de atores concentrados em centros urbanos e industrializados. Pelo contrário. A promessa de “energia limpa”, para torná-la atraente para consumidores e financiadores corporativos, baseia-se na simples substituição de energia dos combustíveis fósseis por energia renovável. O segredo sujo dessa transição, no entanto, é a expansão exponencial da mineração no Sul global que seria necessária para satisfazer a enorme demanda por energia “verde”.

Cobre, cobalto, níquel e lítio, por exemplo, são necessários para veículos elétricos, armazenamento de energia e cabeamento. Entre 2017 e 2050, o Banco Mundial prevê um crescimento de mais de 900% na demanda global de lítio, enquanto a demanda por cobalto deverá aumentar quase seis vezes no mesmo período. (1) De acordo com a equipe de pesquisa Europeia em Mineração e Metais da Bernstein, para cumprir os compromissos dos governos dentro do Acordo de Paris, seria necessário produzir entre 11 e 72 milhões de toneladas de cobre, além de atender à demanda industrial atual. Uma demanda maior implica que a produção de cobre cresça entre 3,1% e 5,8% ao ano. (2) Os preços desses minerais devem subir, e essa elevação significa um aumento significativo no valor das ações de empresas de mineração como Ivanhoe, First Quantum, Glencore, Antofagasta e Anglo American. Um artigo deste boletim aponta o papel da União Europeia em impulsionar o crescimento da demanda mineral como resultado da energia “verde”.

Até o Banco Mundial reconhece que “a transição para a energia limpa demandará um uso muito intensivo de minerais”. (3) Não é novidade que, como o Banco é um importante financiador de mineração em grande escala, sua estratégia é criar um “Mecanismo de Mineração Inteligente para o Clima”, com foco na realização de operações de mineração em florestas, ou seja, “Inteligente para as Florestas”. Um artigo deste boletim explica essa estratégia e alerta sobre como o Banco Mundial planeja compensar qualquer poluição, desmatamento ou perda de biodiversidade que ocorra durante essa transição em que haverá “mineração intensiva”.

A multinacional suíça Glencore, por exemplo, uma das três principais produtoras de cobre, cobalto, zinco e carvão térmico marítimo, e das cinco principais produtoras de níquel, planeja reduzir as emissões em suas operações de mineração usando veículos elétricos, energia renovável e tecnologia digital. Isso gera mais demanda pelos minerais que a empresa já está extraindo. (4) Mais de 25% das atividades de mineração da Glencore estão localizadas em áreas florestais. (5) Essa “transição” não é o oposto do que promete uma economia “limpa”?

Além disso, várias das maiores empresas do mundo que extraem os principais minerais usados ​​na fabricação de baterias estão ligadas a uma longa cadeia de violações de direitos humanos. A Glencore enfrenta 11 alegações de violações da legislação nesse campo, relacionadas à mineração de cobalto, a maioria localizada na República Democrática do Congo (RDC). Trinta e duas alegações dizem respeito à extração de cobre em países como Chile, Peru e Zâmbia. (6) O cobre é essencial para a construção de turbinas eólicas.

Os impactos da mineração são devastadores, principalmente para as mulheres. A devastação não se limita ao local de mineração, pois os impactos desse setor se expandem muito além disso. Os artigos do boletim abordam quatro aspectos relacionados ao setor de mineração que costumam receber menos atenção, mas têm impactos igualmente violentos e destrutivos:

- Compensações da biodiversidade. Um artigo de Madagascar explica como a mineradora australiana Base Resources está usando um projeto de compensação para continuar suas práticas habituais enquanto faz uma limpeza em sua imagem. Na realidade, o projeto de compensação também tem graves consequências, principalmente para as mulheres.

- Barragens de rejeitos de mineração. Um artigo vindo do Brasil relembra os desastres que estão ocorrendo (e provavelmente aumentarão) devido à ruptura de barragens de rejeitos na Amazônia. Quanto mais extração de minérios, mais essas barragens podem se romper.

- Dinheiro da compensação. Um artigo da Índia destaca como o dinheiro que o governo indiano recolhe das empresas de mineração para “compensação” está sendo usado para assediar, perseguir e despejar pessoas de suas casas, que foram transformadas em áreas protegidas.

- Mineração em alto mar. Um artigo de uma rede nas Ilhas do Pacífico alerta sobre como as narrativas da chamada Economia Azul estão escondendo uma corrida por jazidas minerais localizadas no fundo do mar, necessárias para a chamada energia “verde” e renovável. Os primeiros impactos já estão sendo sentidos por territórios costeiros e aldeias a menos de 30 km de alguns desses locais.

Enquanto isso, os combustíveis fósseis (petróleo, gás e carvão) ainda estão sendo amplamente buscados ​​e extraídos – da Indonésia e Nigéria ao Equador, para citar apenas alguns. Muitas indústrias da imensa cadeia produtiva demandam e continuarão demandando grandes quantidades de energia baseada em combustíveis fósseis. Entre essas indústrias estão: aviação, navegação, fertilizantes ou agroindústrias. Outro artigo do boletim, vindo do Equador, nos lembra do enorme poder que as empresas de combustíveis fósseis detêm e como elas expandem suas operações destrutivas.

Esperamos que o boletim revele os impactos ocultos que estão presentes em cada local onde empresas fazem extração. Em contraste com essa devastação estão as histórias de resistência e esperança. Não nos deixemos enganar pelas ondas “verdes” de opressão, e demonstremos nossa solidariedade para com aqueles que defendem seus territórios, que defendem a vida.

(1) NS Energy, Host of top energy firms extracting battery minerals linked to human right abuses, setembro de 2019
(2) Mining MX, Glencore’s green rebrand a complex brew for governments, society and shareholders, julho de 2019
(3) World Bank, Climate-Smart Mining: Minerals for Climate Action
(4) Glencore, Bank of America Merrill Lynch Smart Mine Conference 2019. Leveraging ideas to unlock value, 2019
(5) World Bank, Making Mining Forest-Smart
(6) Veja a nota (1) e IndustriALL global union, Calls for sustainable mining after 43 artisanal miners killed in DRC landslide, julho de 2019