Soluções Baseadas na Natureza: arma milagrosa para salvar o clima ou “solução final” para as florestas e seus povos?

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Captura de tela do vídeo "Soluções baseadas na natureza e Shell" (https://youtu.be/p-_peqYDtoA)

Este artigo mostra quais são de fato os principais programas e projetos que estão sendo promovidos sob a sigla Soluções baseadas na Natureza (SbN), como eles se relacionam com REDD, quem são os proponentes de SbN e quais são seus interesses. Também procura evidenciar que a mudança do discurso de REDD para SbN vai além de apenas mais uma astúcia dos ambientalistas de mercado com a intenção de promover e disfarçar seus interesses particulares. O discurso de SbN sinaliza uma totalitarização da ideologia capitalista, e um agravamento do antagonismo entre capital e natureza.

Este artigo faz parte de uma coleção chamada  "Golpe Verde: falsas soluções para o  desastre climático". Esta publicação analisa criticamente a introdução da "economia verde" no Acre 10 anos atrás, bem como algumas experiências com estas falsas soluções em outros estados do país.

Soluções Baseadas na Natureza: arma milagrosa para salvar o clima ou “solução final” para as florestas e seus povos?

Michael F. Schmidlehner*

“Ações para proteger, administrar de forma sustentável e restaurar ecossistemas naturais ou modificados, que enfrentem os desafios da sociedade de forma eficaz e adaptável, proporcionando simultaneamente bem-estar humano e benefícios para a biodiversidade” [1]. Esta é a definição do termo “Soluções baseadas na Natureza” (SbN - ou NbS, em inglês), estabelecida em 2016, pela União Internacional para a Conservação da Natureza (UICN).

Desde então, a ONG internacional vem destacando este conceito, supostamente novo, como elemento chave de seus programas. Mas quais seriam concretamente estas ações, às quais tal definição se refere, de forma bastante genérica?

Menciona-se preservação, gestão melhorada e restauração de ecossistemas, além de ações para economia de energia, melhoramento tecnológico, desenvolvimento de energias renováveis, transporte público, reciclagem circular etc. Enfim, tratar-se-ia de “ações positivas, ‘sem arrependimento’, pois trazem benefícios combinados a nível ambiental, econômico e social”.
Propagado como solução combinada tanto para biodiversidade quanto para o clima, o conceito de SbN foi rapidamente adotado por outras grandes ONGs preservacionistas. The Nature Conversancy (TNC), a maior destas organizações, fala de “soluções naturais para o clima” e da “solução esquecida para o clima”. [2]  As SbN - e a ideia de uma suposta nova política climática e ambiental baseada na "redescoberta da natureza" - tomaram impulso, nos últimos anos,  no contexto das conferências quadro da ONU sobre mundanças climáticas (CQNUMC, ou UFNCCC na sigla em inglês) e biodiversidade (CBD).

Vendo as brochuras lustrosas e websites destas organizações – com enfáticos depoimentos dos proponentes de SbN -, a cidadã e o cidadão comuns tem a impressão de que uma fundamental mudança de pensamento estaria em curso. Ou de que se iniciaria uma nova era no lidar com a crise ecológica, quando, finalmente organizações da sociedade civil, governos e até empresas estariam cedendo às exigências da natureza, aprendendo e fazendo as pazes com ela. Seria maravilhoso, não?

Entretanto, para o leitor mais crítico, levantam-se suspeitas frente a tanta positividade e entusiasmo. Eufemismo, como disse o historiador Paul Johnson, geralmente é um dispositivo humano para ocultar os horrores da realidade.

Contudo, quem acompanhou publicações destas mesmas organizações dos anos anteriores à “descoberta” de SbN percebe que uma certa expressão não aparece sequer uma única vez nos textos acima mencionados. Trata-se da sigla REDD ou REDD+, que significa Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal, e que havia desempenhado um papel decisivo nos programas anteriores das ONGs de proteção ambiental. Como se explica o súbito desaparecimento da sigla REDD no discurso emergente do SBN?

Oferecemos, aqui, uma explicação para a brusca ascensão do conceito SbN nos últimos cinco anos e o concomitante silenciamento sobre REDD no discurso dominante sobre clima e biodiversidade. 

Na primeira parte, mostraremos quais são de fato os principais programas e projetos que estão sendo promovidos sob a sigla SbN, como eles se relacionam com REDD, quem são os proponentes de SbN e quais são seus interesses.

Na segunda parte, procuraremos evidenciar que a mudança do discurso de REDD para SBN vai além de apenas mais uma astúcia dos ambientalistas de mercado com a intenção de promover e disfarçar seus interesses particulares. Argumentaremos que o discurso de SbN sinaliza uma totalitarização da ideologia capitalista, e um agravamento do antagonismo entre capital e natureza.

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O Google Ngram Viewer permite visualizar ascensão e declínio da expressão “REDD” (grafico superior) e a ascensão de “nature-based solutions” (grafico inferior) em publicações entre 2005 e 2019.

A fórmula mágica das “Soluções Naturais para o Clima” e os horrores da realidade ocultada por ela

“Ao trabalharmos com a natureza, temos o potencial de reduzir as emissões em mais de um terço do que é necessário até 2030” [3]. Afirmações como esta, que circulam atualmente em debates da ONU sobre o clima e fazem SbN parecer uma bala de prata, têm sua origem em um único estudo, publicado em outubro de 2017, sob o título “Soluções Naturais para o Clima”. [4] Neste estudo, os autores, em grande parte funcionários da TNC, afirmam que, para alcançar a meta de manter o aquecimento global abaixo de 2 °C, devem ser aproveitadas três principais “oportunidades de percurso natural”: reflorestamento, conversão florestal evitada e manejo natural de florestas.

O estudo prevê o reflorestamento de nada menos que 678 milhões de hectares, que corresponde aproximadamente ao tamanho do Brasil ou da Austrália. Chris Lang, da plataforma-web REDD-Monitor, e Simon Counsell, ex-diretor da Rainforest Foundation do Reino Unido, realizaram detalhada análise do referido estudo, e mostram que este empreendimento, na prática é inviável. A tentativa de sua implementação nesta escala e no tempo previsto teria consequências desastrosas em termos de conflitos fundiários. [5]

Os autores do estudo original não informam onde tal reflorestamento deve ocorrer, mas o maior potencial para isso, advinham Lang e Counsell, obviamente deve ser encontrado nos países do Sul, com grande parte no Brasil. Reflorestamento de pastagens nesta escala, apesar de ser algo irrealizável na atual conjuntura política, exigiria ainda uma radical redução do consumo de carne por grande parte da humanidade – e não apenas naqueles países historicamente consumidores das agrocommodities desde os tempos coloniais, mas também em países como China e Índia, onde o consumo continua aumentando.

Absolutamente inexequível em termos práticos, o “percurso natural” do reflorestamento garantiria, segundo os cálculos do estudo, mais de 50% das reduções planejadas até 2030. Apontando inúmeras outras inconsistências neste estudo-base de SbN, Lang e Counsell concluem que se trata de “uma combinação de números puramente teóricos, desrespeito pela realidade política e histórica, suposições totalmente implausíveis, pensamento mágico e omissão completa de fatores-chave, tais como questões de equidade”.

Será que os autores da pesquisa eram mesmo tão ingênuos? Certamente não é o caso.  O interesse das grandes ONGs ambientalistas como a TNC, em última análise, não consiste em elaborar programas que fossem exequíveis e que efetivamente evitassem ou mitigassem o colapso climático.  Estas organizações, que hoje se assemelham muito mais a empresas multinacionais do que intervenientes da sociedade civil, precisam antes de tudo criar a aparência de uma solução      “propositiva” alinhada aos interesses econômicos de seus financiadores.

Quem são então os financiadores dos projetos implementados sob o rótulo SbN e quais são seus interesses? A TNC nomeia 33 corporações com as quais mantém parceria para “investir na natureza”. Entre estas, encontramos nomes de grande parte das maiores corporações do mundo: Shell, Amazon, Coca Cola, Nestlé, Cargill, Syngenta, BHP Billiton, Bank of America, American Express, entre outros.  As parcerias de outras grandes ONGs, como a da UICN, a Conservation International (CI) ou WWF, por exemplo, seguem um padrão semelhante.

Caso Shell: créditos de carbono e as ilusões do REDD no centro das SbN

A fim de entender o jogo de interesses por trás das ligações entre ambientalismo e o grande capital, cabe examinar, como um exemplo, o caso da companhia petrolífera Shell. Tendo emitido 31,95 biliões de toneladas de CO2 entre 1965 e 2019 [6] e com isso estando entre os maiores vilões do clima na história da humanidade, a multinacional sediada na Holanda hoje faz esforços para salvar sua imagem pública, e convencer a sociedade da sua ambição em reduzir seu impacto climático.

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Captura de tela do vídeo "Soluções baseadas na natureza e Shell".

Mantendo parceria com a UICN desde 2000, e com a TNC desde 2009, a Shell anunciou, em 2019, o investimento de 300 milhões de dólares em SbN, e desde então tem sido um dos principais protagonistas na divulgação do conceito. Este – diante do faturamento de 23,9 bilhões da empresa em 2018 [7] singelo – invéstimento, junto à declaração da intenção da empresa de querer atingir "emissões líquidas zero" por meio de SbN até 2050, contudo, não foram suficientes para evitar uma condenação na Justiça holandesa, em 2021. Um tribunal civil daquele país decidiu que, até 2030, a Shell precisará reduzir suas emissões líquidas de CO2 em 45%, em comparação com os níveis de 2019. [8]

A maioria das notícias que comemoraram o momento histórico de condenação judicial de um grande poluidor, omitiram o adjetivo “líquidas”, que antecede a palavra “emissões”. Entretanto, existe uma grande diferença entre “reduzir emissões” e “reduzir emissões líquidas”, e esta diferença é crucial para as medidas que a Shell e outros mega-poluidores (que, esperamos, também sejam juridicamente  responsabilizados no futuro) vão tomar ou deixar de tomar para legalizar sua situação.

Redução de emissões líquidas (em inglês, “net-emissions”) inclui a possibilidade de, ao invés de efetivamente um poluidor reduzir as emissões causadas por ele próprio, “compensar” parte das mesmas. Tais compensações se dão através da aquisição de certificados de carbono, oriundos de projetos que removem gases de efeito estufa da atmosfera, ou supostamente evitam sua emissão. Assim se explica o interesse por trás das SbN: proporcionar créditos de carbono baratos, que permitam a máxima exploração de petróleo e gás dentro dos limites legais. Diferentemente de suas ONGs parceiras, a Shell revela claramente o verdadeiro propósito dos projetos SBN :“Créditos de carbono estão no centro das soluções baseadas na natureza da Shell”.

A leitura crítica sobre os projetos SbN da Shell confirma a mesma suspeita que já surgira nas análises sobre a proposta da TNC: as duas “oportunidades de percurso natural” - conversão florestal evitada e manejo natural de florestas- , não são, na verdade, nada além do antigo REDD. A análise de Counsell e Lang conclui que:

’Soluções Climáticas Naturais’ é, em grande parte, um novo nome para aquilo que tem sido conhecido nos últimos dez anos como ‘Redução das Emissões do Desmatamento e Degradação florestal, ou ‘REDD’. [...] Cerca de três quartos do potencial de mitigação reivindicado para o que é agora chamado de ‘soluções climáticas naturais’ seria na verdade sob a forma de árvores e florestas, assim essencialmente o mesmo que REDD+.

Os dois principais projetos para geração de créditos de carbono da Shell estão localizados no Peru e na Indonésia. Neles se exemplificam todas as principais falhas e os impactos desastrosos do mecanismo REDD que, desde muito tempo, vem sendo apontados, e que fizeram com que o conceito acabasse por cair em descrédito.

No Peru, a comunidade Quichua de Puerto Franco está atualmente processando os promotores do projeto REDD+ no Parque Nacional da Cordilheira Azul, do qual a Shell compra créditos [9]. As acusações por parte dos indígenas vão desde a inexistência de uma consulta sobre o projeto, o impedimento do reconhecimento de suas terras, até exclusão e criminalização do seu uso tradicional da terra em função dele. [10] E este já foi, desde o início, o "elefante na sala" nas discussões sobre REDD: na lógica das “emissões evitadas”, qualquer interferência com o “serviço ecossistêmico” (no caso  de REDD, o serviço de sequestro de carbono) por seres humanos – através da agricultura de subsistência, uso de madeira para casas ou canoas – deveria ser evitada, Ou seja, seria melhor que os povos e comunidades que tradicionalmente convivem com a floresta não vivessem nela, para que a floresta melhor pudesse então "fazer seu serviço" de gerar créditos para quem polui, de forma mais eficiente.

O projeto Katingan Mentaya, na Indonésia, que vende créditos de carbono a várias grandes empresas além da Shell - incluindo Volkswagen e British Airways -, alega evitar, através da conservação de florestas turfosas, “a liberação de gases de efeito estufa equivalentes a 447.110.760 toneladas de dióxido de carbono ao longo de 60 anos” [11]. Isso faria dele o maior projeto mundial de emissões de carbono florestal evitadas, com um impacto climático total equivalente às emissões anuais da França.

Uma análise sobre este projeto, feito pelo Greenpeace em outubro 2020, revela as falhas e os paradoxos mais típicos dos projetos de REDD.[12] Trata-se, principalmente, de problemas referentes a três aspectos técnicos, que no jargão conservacionista são chamados de adicionalidade, vazamento e permanência.

Adicionalidade significa que o promotor do projeto deve “comprovar”, num cenário sem seu projeto de REDD, quantas toneladas de carbono seriam teoricamente emitidas por meio de desflorestamento e degradação florestal. A diferença entre este cenário hipotético, sem projeto, e o cenário real, com projeto, permite então calcular a quantidade das emissões "adicionalmente" evitadas pelo projeto, e determina a quantidade de créditos que podem ser vendidos. Obviamente, o interesse do promotor é então de tornar este cenário hipotético o tão negativo quanto possível, e isso é detectado pelo Greenpeace no projeto Katingan Mentaya. A entidade­ conclui que “é altamente provável que a floresta teria armazenado quantidades comparáveis de CO2, mesmo sem o projeto”.

O chamado vazamento consiste no simples fato de que, geralmente, a proibição de desmatamento em uma área implica o aumento de desmatamento em áreas próximas. Ou seja, como consta no relatório da Greenpeace sobre o projeto Katingan Mentaya, “a destruição da cobertura florestal, que pode ter sido evitada na área do projeto, está ocorrendo em outro lugar.”

A permanência diz respeito à promessa do vendedor dos créditos: o carbono permaneceria estocado nas florestas do projeto durante a duração do projeto. No caso de Katingan Mentaya, por 60 anos. Entretanto, sempre há circunstâncias que não são previsíveis, e ainda menos controláveis pelo promotor do projeto. No caso do projeto em questão, já houve, em anos recentes, incêndios florestais e desflorestamentos no entorno, além de desflorestamentos ilegais dentro da área, impactando o ecossistema.

As diversas manobras de “faz de conta” encontradas neste projeto são características gerais de todos projetos de REDD, e fizeram um número crescente de organizações - principalmente aquelas que não aceitam dinheiro de corporações, como o Greenpeace - hoje rejeite este mecanismo, considerando-o como uma grande farsa. O relatório da entidade, aliás, resume a ilusão: “enquanto os compradores dos créditos de carbono continuarem a liberar CO2 na atmosfera - o que afetará nosso clima por cerca de 100 anos -, está longe de ser certo se a floresta ainda estará de pé em 20 ou 50 anos.”

Entretanto, informações como as do relatório da Greenpeace ou da associação peruana da comunidade Quichua dificilmente chegam ao consumidor final. A este, a empresa reforça o engodo através de campanhas publicitárias que asseguram que, abastecendo em postos de gasolina Shell, os consumidores estarão dirigindo um carro “neutro em carbono”, graças aos projetos SbN da companhia.

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Outdoor da Shell em Londres: “Faça mudança dirige neutro em carbono. Membros de Shell GO+ estão agora dirigiendo neutro em carbono, ajudando proteger e replantar florestas. Junte-se a eles hoje!. Foto: Reuters

O paradoxo da “responsabilidade social corporativa” e o mito do “engajamento do setor privado”

A Shell, como qualquer outra sociedade anônima, foi criada para proporcionar o máximo de lucro possível para seus acionistas. Ela sempre escolherá a atender ou contornar exigências legais com o melhor custo-benefício possível. Seria uma grande ingenuidade imputar a ela (ou a qualquer outra corporação) qualquer compromisso com meio ambiente ou questões climáticas. Em seu livro The Corporation, Joel Bakan [13] resume por que esse tipo de promessas de representantes corporativos são, necessariamente, falsas:

 “a lei proíbe qualquer motivação para suas ações, seja para ajudar os trabalhadores, melhorar o meio ambiente ou ajudar os consumidores a economizar dinheiro. Eles podem fazer essas coisas com seu próprio dinheiro, como cidadãos particulares. Como funcionários corporativos, porém, administradores do dinheiro de outras pessoas, eles não têm autoridade legal para perseguir tais objetivos como fins em si mesmos – apenas como meio de servir aos interesses das corporações, o que geralmente significa maximizar a riqueza de seus acionistas. A responsabilidade social corporativa é, portanto, ilegal – pelo menos quando é genuína.”

Não obstante, sob crescente pressão dos lobbies, os acordos da ONU sobre clima e biodiversidade apostam cada vez mais no “engajamento do setor privado”. Em outras palavras, estão entregando o destino de nosso planeta à lógica corporativa de maximização do lucro.

Neste sentido, as soluções “compatíveis com o mercado” promovidas no âmbito da ONU - como REDD ou SbN – chegam a ser piores do que nada, já que, além de dar livre curso à destruição acelerada realizada pela ganância corporativa, impedem a clara percepção do problema por parte da sociedade. Ofuscam suas causas reais  e, ao contrário das palavras escritas no outdoor da Shell onde se lê “faça a mudança acontecer“ (“make the change”, no original) - , políticas de SbN e REDD retardam ou impossibilitam a mudança sistêmica radical que é necessária, ofuscando as causas reais das contradições que nos assolam.

A horrorosa realidade que eufemismos e lavagem verde (“greenwash”) procuram encobrir, mas que inevitavelmente nos alcança, é esta: depois de quase trinta anos de existência dos acordos sobre clima e biodiversidade, com o colapso climático se iniciando, o negócio com combustíveis fósseis está cada vez mais em alta. Desde a adoção do Acordo de Paris em 2015, os bancos globais forneceram US$ 2,7 trilhões em financiamento às empresas de combustíveis fósseis, com o montante anual aumentando a cada ano desde 2016. [14, p. 71]

A totalização da lógica do capital os mitos de “armas milagrosas”

Counsell e Lang sugerem que o estudo "científico" sobre "soluções naturais para o clima" nada mais é do que pensamento mágico e fantasia. A troca da sigla desacreditada do REDD pelo eufemístico das SbN é mera esperteza propagandista. Isso não é dizer pouco? A audácia e a ferocidade com as quais, nos últimos anos, corporações poluidoras e ONGs do verniz ecológico ofuscam e distorcem a realidade apontam para algo ainda mais fundamental.

Para deixar isso mais claro, é preciso destacar algumas etapas da percepção social da crise ecológica, desde a década de 1970. Nesta década, na qual a “crise energética” entrou pela primeira vez na pauta da sociedade industrial, duas publicações merecem destaque neste contexto. Primeiro, o estudo científico de Nicholas Georgescu-Roegen, intitulado “A lei da entropia e o processo econômico” [15]. Nesta obra, o físico romeno, aplicando a teoria da termodinâmica, comprovou que todos os recursos naturais são irreversivelmente degradados quando colocados em uso na atividade econômica, e que as economias da sociedade moderna industrializada, pautadas no crescimento, aceleram este processo dramaticamente. Georgescu-Roegen concluiu que, para evitar o colapso econômico e ecológico, um decrescimento econômico seria necessário.

Um ano depois, o relatório “Os limites do crescimento” [16] - resultado de um estudo encomendado pelo Clube de Roma – prognosticou por meio de simulações computadorizadas que, sem mudanças substanciais no consumo de recursos, um declínio repentino e incontrolável tanto na população quanto na capacidade industrial seria inevitável. Os dois estudos imediatamente encontraram resistência por parte de economistas e empreendedores; contudo, a contradição fundamental entre crescimento econômico infinito e recursos naturais finitos ficou explicitada, a partir daquele momento.

Nas duas décadas seguintes, marcadas pela gradativa consolidação do neoliberalismo, os governos tiveram que apresentar planos para lidar com as crises ambiental e climática, que àquela altura não podiam mais ser ignoradas. O conceito do “desenvolvimento sustentável”, que acabou norteando as convenções criadas na ECO-92, baseou-se na suposição de que crescimento econômico e preservação de meio ambiente e clima, em princípio, poderiam ser conciliados, “se as nações industrializadas continuarem a orientar seu crescimento para atividades que consumam menos energia e matérias-primas, e a usar de modo cada vez mais eficiente estas últimas”. [17, p. 55] Nesta concepção, a oposição entre crescimento e preservação foi timidamente reconhecida, mas a possibilidade de um "meio termo" que pudesse reconciliá-los foi afirmada.

No novo milênio, o capitalismo financeiro dominou a economia mundial, e a conduziu à crise de 2008. Desde então, o capital encontra na acelerada financeirização de bens comuns, como a água, e de serviços públicos, como da educação e da saúde, as novas bases para sua acumulação. E a financeirização da natureza – isto é, sua redefinição como “capital natural”, que já havia sido proposta pelos economistas Herman Daly e Robert Costanza [18] na década de 1990 -, agora se oferece como solução para o iminente colapso da economia. Processos ecológicos como sequestro de carbono, conservação de biodiversidade e das águas, entre outros, agora redefinidos como serviços ecossistêmicos , são oferecidos como rentáveis ativos econômicos, na medida em que se tornam escassos ou ameaçados. Ou seja, a crise se torna oportunidade de negócio.

A assim reinventada, virtualizada e capitalizada natureza não se opõe mais ao crescimento. Ao contrário, ela necessita de valoração econômica e de investimentos para ser “salva”. Esta lógica começou a se tornar dominante principalmente a partir de 2012, durante a Rio+20, onde a Economia Verde foi propagada e os principais representantes do setor financeiro lançaram a Declaração do Capital Natural [19]. Foi a partir deste momento que o discurso das “soluções” e das situações “win-win” (ganha-ganha) começou a ofuscar cada vez mais o debate sobre a necessidade de redução de atividades nocivas ao meio ambiente e ao clima. É neste contexto que se inserem as SbN.

Diante do aumento das emissões, da corrida desenfreada pelo crescimento econômico e das consequências cada vez mais desastrosas da mudança climática, não podemos diminuir estas construções discursivas como apenas mais um astuto eufemismo, ou mais um truque de marketing. Trata-se de delírios mortíferos, e da total perda da realidade, posto que a totalização da lógica do capital sobre a natureza e o imperativo absoluto do crescimento econômico levaram a uma negação direta tanto da realidade quanto da necessidade urgente e imediata de reduzir emissões radicalmente e deixar combustíveis fósseis no solo.

Não é exagero comparar esta guerra delirante que o capitalismo trava contra a vida na terra (e que só pode ser perdida), com a guerra dos nazistas pelo domínio mundial e a perda da realidade que marcou sua fase final. Os oficiais de alto patente alimentaram as fantasias de “armas milagrosas” e sustentaram a ilusão da “vitória final” nas pessoas para que estas mantivessem a obediência. Hoje, corporações, bancos e grandes ONGs mantêm a ilusão de fantásticas soluções ambientais e climáticas para manter os fluxos de capital que as sustentam.

SBN - “solução final” para a floresta amazônica e seus habitantes?

As primeiras vítimas desta guerra são os povos da floresta.  Divididos entre si diante das propostas do capitalismo verde, alguns estão sucumbindo às promessas de ONGs como TNC e UICN. Na apresentação do projeto "Amazônia 2.0” da UICN, pode-se ler:

O projeto no Brasil é executado pela UICN-Brasil e opera em três territórios (Terras Indígenas Alto Rio Purus e Mamoadate e Parque Estadual Chandless) e com quatro povos indígenas (Kaxinawa, Madjá, Manchineri e Jaminawa) e comunitários do Parque Chandless, no estado do Acre. A área de trabalho é de um milhão de hectares e faz fronteira com o Peru, gerando um cenário com desafios singulares.  [20]

Um projeto elaborado pela Comissão Pró Índio do Acre (CPI-Acre, parceira local da UICN) para o trabalho com as comunidades [21] tem como principal objetivo o “fortalecimento dos modelos de governança florestal nos territórios”. Nas 65 páginas do documento, as palavras “carbono”, “REDD” ou “REDD+” não aparecem sequer uma única vez. No entanto, a página web da UICN revela, como parte dos objetivos específicos do projeto, “aplicação das salvaguardas de REDD+” e “ênfase no acompanhamento das estratégias nacionais de REDD+”. [22]

Não por acaso, este programa da UICN, financiado pela União Europeia, elegeu o Acre como porta de entrada para o Brasil. Neste estado, durante duas décadas, um governo que se autodenominou “Governo da floresta” criou um vasto arcabouço institucional e jurídico para viabilizar a comercialização de certificados de carbono e de outros “serviços ambientais” a partir de suas extensas florestas.
As invasões por madeireiros e fazendeiros - que atualmente vem sendo facilitadas pelo governo Bolsonaro -, assim como a rodovia planejada entre Pucallpa, no Peru, e Mâncio Lima (AC), ainda servirão para valorizar o carbono estocado nestas florestas, uma vez que o projeto terá maior “adicionalidade”, dada pela ameaça de desmatamento relacionada a um megaprojeto cujo impedimento não é objetivo de projetos de REDD ou SBN.

Ao mesmo tempo, um crescente número de indígenas, ribeirinhos, quilombolas e outros moradores e moradoras da floresta estão se preocupando com a ameaça do golpe verde que visa transformar a Amazônia num sumidouro de carbono. Porque nisso se resume, em última análise, a visão de uma Amazônia 2.0. Na Carta em Defesa da Amazônia e da Mãe Terra (reproduzida na íntegra neste dossiê), escrita durante um encontro em maio de 2021, e no qual participaram representantes de três dos quatro povos mencionados pela UICN, podemos ler:

Denunciamos que estamos sitiados/as entre a violência direta, exercida por madeireiros, fazendeiros e megaprojetos, e agravada pela política fascista e genocida do governo brasileiro; e a violência indireta, mas não menos severa, do ‘capitalismo verde’ com seus projetos e programas REDD+, REM, PSA e “Soluções Baseadas na Natureza”.

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Em 2012, o project REDD do povo Mundukuru fez manchetes por práticas fraudulentas, o que deu início à desacreditação dos mecanismos REDD. A propaganda de 2015 para etno-turismo nos Mundukuru (imagem acima) expressa a autorrepresentação que muitos povos são levados a assumir no contexto contemporâneo capitalista: “Se quiser cuidar da floresta, você precisa investir em nos – povos indígenas – porque ninguém cuida melhor da florsta que nos.”Imagem: Law in Action

Os dois tipos de violência – a direta e a indireta – são movidos pelo mesmo interesse de acumulação de capital e, no final das contas, a primeira viabiliza a segunda. Na medida em que o governo deixa de proteger os povos da floresta contra as invasões, ou até as incentiva, estes são forçados a se aliar com as corporações poluidoras e servir seus interesses de compensação. As ameaças diretas ao território jogam a favor dos poluidores, uma vez que, segundo a lógica da “adicionalidade”, aumentam o valor do carbono não emitido. Com os esquemas de financeirização da natureza, como já vislumbrou o antropólogo Arturo Escobar no final da década 1990, os povos estão “finalmente reconhecidos como donos de seus territórios (ou o que resta deles), mas somente na medida em que aceitam ver e tratar o território e a si mesmos como reservatórios de capital.”. [24, p. 335] Eufemisticamente “reconhecidos” e apresentados em material de propaganda como “guardiões da floresta”, eles terão suas práticas tradicionais e sua relação com a terra restritas ou vetadas em função do cobiçado “serviço ecossistêmico”.

O processo de separação de comunidades autossuficientes da terra, para que esta possa ser submetida a um regime de acumulação de capital, é condição fundamental e permanente para o crescimento capitalista – conforme descrito por Karl Marx [25] e Rosa Luxemburgo [26]. Esta chamada acumulação primitiva chega ao seu pleno efeito assim que a crise ecológica é transformada em negócio. Na carta do encontro mencionado, consta:

 Durante a grande enchente (...) no Acre em 2021, muitos indígenas, ribeirinhos e pequenos agricultores tiveram seus roçados e suas casas destruídos, e atualmente não tem como alimentar suas famílias adequadamente. As proibições de caça e do uso de madeira e os sistemas de vigilância ambiental implementados nos nossos territórios agravam ainda mais as crises alimentares e de moradia.

Não sabemos se já ultrapassamos o ponto de não retorno no sistema terrestre, nem sabemos se um grande colapso climático e ecológico é algo inevitável. Mas, talvez não menos urgente, a questão que surge diante desta situação é: quem somos nós, enquanto sociedade? Estamos tão decadentes que queremos nos deixar cegar perante as causas da destruição do nosso mundo? Como iríamos responder à pergunta que será feita dentro de algumas décadas: como as pessoas poderiam deixar isso acontecer?  

Ainda podemos dar respostas, podemos reagir! Devemos, antes de tudo, reconhecer que as conferências da ONU sobre clima e biodiversidade já foram instrumentalizadas por interesses econômicos a ponto de não podermos mais esperar mudanças efetivas a partir deles. A COP-15, conferência sobre biodiversidade da ONU, a COP-26 sobre clima, realizadas no segundo semestre de 2021, consolidaram, ainda mais, políticas do capitalismo verde.

Precisamos nos unir, entrar em ação e atender a solicitação dos povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos e pequenos agricultores que decidiram lutar:  Apelamos para a sociedade civil do Brasil e do mundo, que se solidarizem com nossa luta pela sobrevivência, pela floresta amazônica e pela vida na Terra, e que refutem as falsas soluções do capitalismo ‘verde’!. [23]

 

*Michael F. Schmidlehner é professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Acre – IFAC. michaelschmidlehner@gmail.com

Referências

[1]    E. Cohen-Shacham, G. Walters, C. Janzen, e S. Maginnis, “Nature-based solutions to address global societal challenges”, IUCN Gland Switz., vol. 97, 2016.
[2]    TNC, “Natural Climate Solutions”, The Nature Conservancy (acessado set. 18, 2021).
[3]    UNEP, “The UN Environment Programme and nature-based solutions”, UNEP - UN Environment Programme, 2020. (acessado ago. 12, 2021).
[4]    B. W. Griscom et al., “Natural climate solutions”, Proc. Natl. Acad. Sci., vol. 114, no 44, p. 11645–11650, 2017.
[5]    C. Lang e S. Counsell, “Offsetting fossil fuel emissions with tree planting and ‘natural climate solutions’: science, magical thinking, or pure PR? | REDD-Monitor”. (acessado set. 16, 2021).
[6]    “Revealed: the 20 firms behind a third of all carbon emissions | Climate crisis | The Guardian”. (acessado set. 16, 2021).
[7]    “Statement of Income - Shell Annual Report 2019”. (acessado set. 16, 2021).
[8]    “Historic victory: judge forces Shell to drastically reduce CO2 emissions.”, Friends of the Earth International, maio 26, 2021. (acessado set. 16, 2021).
[9]    “Press Release: Indigenous Kichwa Community take Peruvian State and National Park to Court | FPP”. (acessado set. 16, 2021).
[10]    Forest Peoples Programme, “Press Release: Indigenous Kichwa Community take Peruvian State and National Park to Court | FPP”. (acessado set. 18, 2021).
[11]    “Katingan Mentaya Project”. (acessado set. 16, 2021).
[12]    Greenpeace, “VW’s Carbon Footprint”, p. 17.
[13]    J. Bakan, The corporation: The pathological pursuit of profit and power. Hachette UK, 2012.
[14]    Reclaim Finance, RAN, e Urgewald, “Five Years Lost: How Finance is Blowing the Paris Carbon Budget”. dez. 2020. Acessado: set. 11, 2021. [Online]. Disponível aqui.
[15]    N. Georgescu-Roegen, The entropy law and the economic process. Cambridge, Mass./London: Harvard UP, 1971.
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[17]    Brundtland e VN-commissie et al., Nosso Futuro Comum. Comissão mundial sobre meio ambiente e desenvolvimento. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1991.
[18]    R. Costanza e H. E. Daly, “Natural capital and sustainable development”, Conserv. Biol., vol. 6, no 1, p. 37–46, 1992.
[19]    UNEP-FI, FGV, e GCP, “Declaração do Capital Natural”. 2012. acessado: set. 18, 2021. [Online]. Disponível aqui.
[20]    “The Amazonia 2.0 project in Brazil is implemented by IUCN-Brazil.” (acessado set. 16, 2021).
[21]    CPI-Acre, “Desenho do plano de formação para os monitores da Amazônia 2.0 no Brasil e o plano de monitoramento para a Terra Indígena Mamoadate”. nov. 2020.
[22]    “Amazonía 2.0 | UICN”. (acessado set. 16, 2021).
[23]    “Carta em Defesa da Amazônia e da Mãe Terra, contra as Invasões do Capital, da Violência Bruta e dos Golpes ‘Verdes’ | WRM em Português”. (acessado set. 16, 2021).
[24]    A. Escobar, “Construction nature: Elements for a post-structuralist political ecology”, Futures, vol. 28, no 4, p. 325–343, 1996.
[25]    K. Marx, “Das Kapital, Buch 3, Vierundzwanzigstes Kapitel. Die sogenannte ursprüngliche Akkumulation”, in Karl Marx, Friedrich Engels Werke, vol. 23, Diez, 1962, p. 741–791.
[26]    R. Luxemburg, Die Akkumulation des Kapitals: Ein Beitrag zur ökonomischen Erklärung des Imperialismus, vol. 1. Buchhandlung Vorwärts Paul Singer, 1913.