Água, extrativismo e minerais críticos no Brasil: algumas reflexões

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A relação entre mineração e água deve ser encarada a partir de múltiplas relações, dentre as quais diversas são capazes de gerar conflitos socioambientais. Mais do que isso, à medida que o Brasil aprofunda seu perfil extrativista, há forte tendência de que tais conflitos se aprofundem. Ao longo deste texto, argumento que já existe no Brasil um quadro conflituoso envolvendo a mineração e o uso da água, e que a ampliação da extração mineral para a obtenção dos chamados minerais críticos tende a aprofundar tais conflitos no futuro próximo.

Para debater esse assunto, eu divido o texto em duas partes. Primeiramente descrevo os principais impactos que a atividade mineral tem sobre os recursos hídricos e destaco como eles geram conflitos socioambientais. Em seguida, apresento os principais vetores de expansão da extração dos minerais críticos no país e analiso os possíveis efeitos sociais e ambientais.

Mineração, água e conflitos

A água possui um papel central nas atividades de extração mineral. Ela é tão relevante que pode-se afirmar que “[em] numerosas minas se extrai muito mais água que minério”. (1) Quando se adota uma avaliação em escala mundial ou nacional, o setor mineral costuma aparecer como um pequeno consumidor de água. Por esse motivo, a escala é um dos principais aspectos a ser considerado ao se estudar a relação entre mineração e água. Mais do que olhar médias ou dados nacionais, é importante avaliar as escalas locais ou, no máximo regionais, pois é nesse nível que os impactos são percebidos e, consequentemente, onde ocorrem os conflitos. (2)

A extração e o processamento dos minérios exigem grande quantidade de água, além de serem intensivos no uso de produtos químicos. Como resultado, as principais implicações da mineração para a dinâmica das águas são o esgotamento de mananciais ou a sua contaminação.

Com relação ao consumo de água, diferentes atividades relacionadas à extração mineral são capazes de comprometer a disponibilidade para outros usuários. As principais consistem no consumo pelas usinas de concentração (que separam os minérios das demais substâncias), no transporte por minerodutos, no impacto na dinâmica de recarga de aquíferos pela retirada dos minérios, no rebaixamento da água subterrânea para se acessar os minerais, e no barramento de rios para a geração de energia elétrica, que irá abastecer as usinas de concentração.

Além desses impactos, também de grande relevância é o potencial de poluição da mineração. Nesse sentido, os efeitos possuem amplo alcance do ponto de vista espacial e temporal, podendo algumas das mudanças durar décadas, ou mesmo séculos. (3)

No aspecto qualitativo são diversas as formas como a extração mineral pode impactar negativamente os recursos hídricos. Uma primeira fonte de poluentes é a própria frente de mineração, onde o material é escavado, uma vez que os sistemas de drenagem e o processo de deságue podem transferir para os corpos hídricos efluentes contaminados. Uma segunda atividade problemática é a mineração dentro dos rios, que se utiliza da dragagem do leito para, posteriormente, separar minérios em baixa concentração (ex. ouro). Uma terceira fonte potencial de contaminação é a lixiviação, um processo pelo qual o material retirado das frentes de lavra é tratado com produtos químicos (por exemplo, cianeto) que se combinam com minérios específicos e facilitam a sua separação. Esse processo pode gerar efluentes altamente poluentes. As pilhas de estéril (4), também devem ser mencionadas, uma vez que, em alguns casos, podem conter substâncias tóxicas e sua deposição sobre a superfície, com efeito da chuva, pode gerar deslocamento químico e físico do material, contaminando as águas. Por fim, ainda existe o problema das barragens de rejeito (5), que são comumente construídas sobre o leito de rios e, por isso, geram o risco de contaminação no caso de conterem substâncias tóxicas. (6)

Como consequência de todos esses impactos não é incomum que empresas mineradoras entrem em conflito com outros usuários dos recursos hídricos. Nos últimos anos, houve um aumento significativo dos conflitos socioambientais envolvendo água e mineração. Entre 2011 e 2020, no Brasil, a quantidade desses conflitos passou de 11 para 143 por ano. Sendo assim, desde 2014, quando ultrapassaram as hidrelétricas, as mineradoras têm sido as principais deflagradoras de conflitos por água. (7)

‘Minerais críticos’ e a expansão da fronteira extrativa

A economia brasileira possui um forte perfil extrativista, e existe a expectativa de ampliar ainda mais a extração mineral no país nos próximos anos. O Instituto Brasileiro de Mineração (Ibram) prevê, para o período entre 2022 e 2026, investimentos da ordem de US$ 40,4 bilhões. Essa quantia é a segunda maior valor de uma curva ascendente de investimentos que se iniciou no quinquênio 2017-2021, quando a previsão foi de US$ 18 bilhões. (8)

Uma parte dos investimentos previstos vai, particularmente, para a extração dos chamados minerais críticos. Esse termo vem sendo utilizado para denominar minerais que são usados em equipamentos de tecnologia (computadores, celulares etc.) e, principalmente, na transição tecnológica para a chamada ‘energia de baixo carbono’. (9) Nesse contexto, os principais usos seriam a fabricação de sistemas de geração de energia solar e eólica, a produção de baterias para armazenamento de eletricidade, e a construção de redes de transmissão elétrica. (10) O quanto essas fontes de energia seriam de fato “limpas” é alvo de questionamento, principalmente devido às emissões atmosféricas e demais impactos ambientais associados à sua cadeia de suprimento (11).

O Mapa mostra todas as áreas no Brasil onde há lavras ou pedidos de pesquisa mineral relacionados a esses minerais. A partir desses dados é possível verificar três vetores principais de expansão onde, possivelmente, conflitos futuros deverão se concentrar. Nesse sentido, os conflitos por água devem ter um papel ainda mais central.

Primeiramente, existe um arco que inclui norte de Minas Gerais, oeste e norte da Bahia, sudeste do Piauí, oeste de Pernambuco e sul do Ceará. Essas áreas, já ocupadas por inúmeras comunidades tradicionais e campesinas, são caracterizadas por um clima semiárido, e os cenários do Painel Intergovernamental sobre Mudanças do Clima (IPCC) apontam, com alta confiança, um aumento da duração das secas nessa região, havendo risco inclusive de desertificação. A escassez local de água tende a se tornar ainda mais profunda com a implantação de projetos extrativos intensivos em recursos hídricos.

Um segundo destaque no Mapa corresponde ao norte de Goiás e ao sul do Tocantins. Essa é uma área de domínio do Cerrado, que já sofre com altas taxas de desmatamento devido à expansão do agronegócio. A destruição do Cerrado tem tido importante influência na dinâmica hídrica da região com potenciais desdobramentos para o resto do país, em especial para rios da Região Amazônica, uma vez que aí nascem importantes rios como o Xingu, Tocantins, Araguaia, entre outros.

Por fim, merecem destaques as manchas localizadas na Amazônia Legal, como norte do Mato Grosso, sudeste e leste do Pará, leste do Amazonas e norte de Roraima. A área total dos processos minerários nesta região soma mais de 238 mil km2, um valor superior a 20 milhões de campos de futebol. Os minerais com maior participação nos projetos extrativos na Amazônia são cobre, alumínio, manganês, níquel e nióbio.

 

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Mapa: Distribuição dos processos minerários para extração de minerais críticos. Fonte: Adaptado a partir de dados da ANM, Funai e IBGE

 

Muito provavelmente a implementação e a consolidação desses projetos tenderão a estimular ainda mais o desmatamento na região. Assim, os povos tradicionais serão os mais diretamente afetados, não apenas pela destruição dos meios que garantem seu modo de vida, como também pela adoecimento resultante da contaminação da água.

Em uma perspectiva mais ampla, essa expansão da fronteira mineral na Região Amazônica acabará por criar um paradoxo. Se esses projetos forem levados adiante, o suprimento de minerais extraídos sob a justificativa da ‘transição energética’ acarretará no aumento do desmatamento da Floresta Amazônica, o que intensificará as mudanças climáticas, além de comprometer o regime de chuvas em escala nacional e continental.

Em resumo, o setor mineral se caracteriza por um grande uso da água. O atual modelo mineral do Brasil tem tido como resultado um número crescente de conflitos entre corporações extrativas e comunidades locais, particularmente envolvendo o acesso à água.

O discurso da ‘transição energética’ vem sendo usado para justificar a expansão da fronteira mineral, sem a devida alteração do modelo energético. Assim, as consequências mais prováveis serão o aumento dos conflitos, a intensificação de problemas hídricos e, ainda, um aprofundamento da crise climática em âmbito regional e global. Portanto, questionar o atual modelo mineral brasileiro e a chamada ‘transição energética’ se mostra imperativo para impedir a concretização desse cenário.

Bruno Milanez
Professor Associado da Universidade Federal de Juiz de Fora, coordenador do Grupo de Pesquisa e Extensão Política, Economia, Mineração, Ambiente e Sociedade (PoEMAS).

(1) (p.20) em RUBIO, R. F. A gestão dos recursos hídricos e a mineração: visão internacional. In: DOMINGUES, A. F.;BOSON, P. H. G., et al (Ed.). A gestão dos recursos hídricos e a mineração. Brasília: Agência Nacional das Águas. p.19-50. 2006. 

(2) NORTHEY, S. A. et al. Water footprinting and mining: where are the limitations and opportunities? Journal of Cleaner Production, v. 135, p. 1098-1116, 2016.

(3) OSSA-MORENO, J. et al. The Hydro-economics of mining. Ecological economics, v. 145, p. 368-379, 2018.

(4) O estéril é um material com granulometria variada, formado principalmente por rochas e solo que são removidos da frente de lavra por não possuir um teor de minérios suficiente para ser beneficiado. Eles são depositados em pilhas dentro do complexo minerário que podem atingir dezenas de metros de altura.

(5) Os rejeitos são resíduos oriundos do processo de concentração mineral. Eles são associados, principalmente ao processamento a úmido dos minérios, onde eles são separados por densidade. Para que isso ocorra, os minérios são moídos e depois misturados à água e produtos químicos. Por ser mais denso, o minério se sedimenta; e os demais materiais junto com a água formam um composto lamoso, que é lançado nas barragens de rejeito. Estas barragens podem ultrapassar os 100 m de altura e conter milhões de m3 de rejeito.

(6) HOEKSTRA, A. Y. The water footprint of industry. In: KLEMEŠ, J. J. (Ed.). Assessing and measuring environmental impact and sustainability. Kidlington: Butterworth-Heinemann. p.221-254. 2015.

(7) WANDERLEY, L. J. M.; LEAO, P. R.; COELHO, T. A apropriação da água e a violência do setor mineral no contexto do neoextrativismo brasileiro. Conflitos no Campo Brasil, v. 1, p. 158-169. 2021

(8) Ibram (2022) Setor mineral 1S22 2T22. Disponível em https://ibram.org.br/wp-content/uploads/2022/07/IBRAM_RESULTADOS_1o_SEMESTRE_22_IMPRENSA.pdf

(9) A lista de minerais críticos é bastante ampla, incluindo: alumínio, bário, boro, cádmio, cobalto, cobre, cromo, elementos terras raras, estanho, gálio, germânio, índio, lítio, manganês, molibdênio, níquel, prata, selênio, silício, telúrio, vanádio e zinco, entre outros.

(10) BUCHHOLZ, P., E BRANDENBURG, T. Demand, supply, and price trends for mineral raw materials relevant to the renewable energy transition wind energy, solar photovoltaic energy, and energy storage. Chemie Ingenieur Technik, v. 90, n. 1-2, p. 141-153, 2018.

(11) OVERBEEK, W. Veículos elétricos: conduzindo sofrimento e poluição. Boletim WRM, n. 256, p. 5-11, 2021.