Madagascar: O “absurdo da compensação”

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Madagascar

“É um absurdo e uma injustiça que eles nos tirem a nossa floresta afirmando que querem protegê-la, enquanto, na realidade, é só uma maneira para continuarem devastando outra floresta, em outro lugar, com suas minas”.

Foi assim que fomos recebidos há algum tempo pela assembleia de Antsontso, uma pequena comunidade no extremo sul de Madagascar. Era setembro de 2016. Pela terceira vez em alguns anos, a organização italiana Re:Common decidiu voltar à grande ilha para continuar a desvelar a fraude da compensação de biodiversidade, que está enriquecendo as mineradoras e deixando na miséria comunidades do mundo todo.

O que é compensação de biodiversidade?

Há alguns anos, empresas transnacionais, envolvidas principalmente em mineração, agricultura industrial e construção de grandes projetos de infraestrutura, junto com instituições financeiras internacionais, como o Banco Mundial e o Banco Europeu para Reconstrução e Desenvolvimento, alguns importantes grupos internacionais de conservação da natureza e um número crescente de governos começaram a usar, cada vez com mais frequência, uma estratégia conhecida como “compensação de biodiversidade”.

Segundo eles, esse mecanismo ajudaria a proteger a diversidade biológica, com o argumento de que a biodiversidade e as funções ecossistêmicas relativas a cada hectare destruído pelas operações das empresas seriam protegidas ou restauradas em outros lugares.

Uma mina atuando no resgate da biodiversidade?

A mina QMM, da Rio Tinto, localizada em Fort Dauphin, em Madagascar, na região de Anosy, vem operando desde 2005. Ela tem uma licença para dragar 6 mil hectares de uma singular floresta litorânea e extrair ilmenita, um branqueador industrial usado em vários produtos, de tinta a pasta de dente. A operação vem removendo as últimas faixas da floresta na borda sudeste da ilha, uma das áreas biológica e culturalmente mais diversas do mundo.

Para equilibrar o tanto que se fala dos impactos negativos sobre um ambiente tão frágil e precioso, nos últimos anos, a Rio Tinto (RT) preparou o caminho para enfrentar as críticas ambientais a suas operações, investindo milhões de dólares em um Plano de Ação para a Biodiversidade apoiado internacionalmente. Apesar de ser a mais poderosa empresa multinacional de mineração do mundo, com conflitos socioambientais espalhados por seis continentes, a RT conseguiu ser reconhecida como “líder mundial” na proteção da biodiversidade. Para isso, a empresa multinacional fez alianças estratégicas com influentes grupos de conservação, bem como com especialistas de boa reputação na academia, que permitiram à corporação afirmar publicamente que a mina de ilmenita “veio salvar a biodiversidade singular da área costeira de Fort Dauphin”. (1)

Na verdade, o projeto de compensação de biodiversidade da Rio Tinto/QMM em Madagascar é o mais divulgado no setor de mineração. Ele pretende compensar a perda de biodiversidade resultante da destruição da singular e rara floresta costeira existente na área de mineração de ilmenita da Rio Tinto QMM “preservando” uma floresta em Bemangidy-Ivohibe, a cerca de 50 km ao norte dessa área. No entanto, a “preservação” se traduz na introdução de restrições ao uso da floresta por comunidades locais.

Uma investigação conjunta da Re:Common e do Movimento Mundial pelas Florestas Tropicais (WRM), em setembro de 2015, teve como objetivo registrar as visões dos moradores que vivem na proximidade de uma das três áreas que compõem o plano de compensação de biodiversidade da Rio Tinto QMM para a mina de ilmenita da empresa em Fort Dauphin (2). Nossas conversas com os moradores de Antsontso, onde o projeto de compensação está sendo realizado, revelaram que a situação real é muito diferente das histórias que a empresa conta no exterior.

Especificamente, o projeto de compensação de biodiversidade tornou ainda mais precários os meios de subsistência das pessoas que vivem no local de compensação, ao impor restrições extremamente severas ao uso da floresta, quase a única fonte de subsistência para os moradores dessa região. Foram prometidas alternativas de geração de renda para aliviar a perda de acesso à floresta, mas elas ainda não se materializaram. Enquanto isso, as pessoas enfrentam uma luta diária para se alimentar.

Em setembro de 2016, cerca de um ano depois, o pioneiro videodocumentário Your Mine (3) foi filmado com os habitantes de Antsontso e permitiu revelar quem se beneficia realmente do projeto de compensação de biodiversidade e quem está arcando com suas consequências insuportáveis.

Ampliando o protesto

A fim de fortalecer a solidariedade com o povo de Antsontso, que sofreu impactos tão duros das restrições impostas ao acesso às suas terras florestais, bem como apoiar a busca da justiça, a Re:Common, juntamente com uma série de grupos com sede na Europa, passou a dar apoio à tentativa da comunidade de levar suas vozes aonde as decisões costumam ser tomadas, e onde muitas vezes as histórias contadas diferem muito da realidade concreta. A assembleia geral anual de acionistas da Rio Tinto em 2017 seria incomum, já que incluiria representantes da comunidade de Antsontso como parte da ação conjunta com a sociedade civil para chamar a atenção para a licença social que a QMM tem para operar. Os moradores que representam a comunidade afetada pelo programa de compensação de biodiversidade da QMM, que os deixou sem terras férteis e sem compensação pela perda de seu acesso à floresta, sua segurança alimentar e seus meios de subsistência, deveriam levar novas perguntas para a empresa responder.

Porém, alguns dias antes da data de sua viagem, os moradores de Antsontso foram informados de que os vistos para sua entrada no Reino Unido haviam sido negados. As razões apresentadas não só mostraram os preconceitos questionáveis ​​do governo do Reino Unido em relação aos povos indígenas, mas também suscitaram suspeitas graves e não respondidas de interferência da empresa.

O membro da comunidade que planejava participar da Assembleia Geral Anual foi informado afrontosamente por autoridades britânicas de que “carecia de qualificação” para falar sobre questões ambientais e de direitos humanos (4). Isso, na verdade, faz com que a Rio Tinto perca rapidamente sua credibilidade. Curiosamente, em outubro de 2016, o tão elogiado comitê de biodiversidade da QMM já havia renunciado, afirmando que a Rio Tinto e a QMM haviam diluído seu compromisso com a mineração responsável ao criar “uma estratégia vaga e fundamentalmente enfraquecida” (5).

Mas a história não termina aqui.

Mesmo que a luta da comunidade de Antsontso por justiça ainda esteja em andamento e qualquer desfecho previsível provavelmente ainda esteja longe, algumas reflexões mais gerais podem ser extraídas dessa história tão sintomática.

Compensação para quem?

Nos últimos anos, estamos assistindo a um número crescente de pesquisadores, ativistas e profissionais envolvidos em discussões e análises votadas a atribuir valores econômicos à natureza, sob o pressuposto de que a única maneira de protegê-la é torná-la “economicamente visível”. Essa busca por medir o imensurável produziu uma infinidade de métricas, sistemas contábeis e até mesmo bancos naturais, juntamente com grandes debates em torno dessas ferramentas, com o único resultado de que as questões mais fundamentais da justiça social permaneceram, em grande parte, sem ser abordadas.

Nós assumimos uma postura de oposição fundamental a uma abordagem que deseja trancar “pessoas” e “natureza” em dois blocos separados, bem como uma rejeição ética de um processo destinado a abstrair habitats complexos e dinâmicos em equivalências baseadas em métricas e unidades questionáveis, tendo em mente a experiência de curto prazo dos créditos de carbono. Questionamos até mesmo a eficácia das compensações para tornar os “créditos de biodiversidade” financeiramente atraentes e, ao mesmo tempo, eficientes em termos de conservação da biodiversidade.

No entanto, não queremos basear nosso argumento na (falta de) eficiência e eficácia desses mecanismos, e sim no questionamento de seu propósito.

Proteger a natureza e a biodiversidade tem pouco ou nada a ver com compensar a biodiversidade, pois o objetivo atual desses esquemas é permitir mais destruição e apropriação ao legitimar ou mesmo legalizar os crimes ambientais. Atrás da história sombria de proteção da natureza, na verdade, existem centenas de milhões em dinheiro público sendo desviados para os bolsos das empresas transnacionais.

O extrativismo, entendido como extração sistemática de riqueza e soberania dos territórios, tem uma necessidade constante de novos projetos de mineração ou grandes barragens em áreas ricas em biodiversidade (mais frequentemente, no Sul), bem como megaprojetos de infraestrutura, como estradas ou áreas residenciais em regiões mais antropizadas.

Para conseguir o controle sobre esses recursos, a máquina extrativista deve superar a oposição crescente das comunidades que simplesmente não quiserem abrir mão do direito de decidir o que acontecerá em seus territórios. Daí vem a necessidade de as empresas elaborarem formas novas e mais sofisticadas para obter sua licença para destruir.

Ao lançar e promover projetos de compensação, as empresas não só podem continuar com seus negócios de sempre sem ser incomodadas, mas podem fazê-lo apresentando-se como líderes da conservação da natureza, com o apoio ativo de institutos de pesquisa de boa reputação, ONGs de conservação, parte da academia, e outro aliado poderoso: o Estado. Na verdade, o Estado é estruturalmente indispensável para o sucesso desse modelo predatório, pois tem o poder de torná-lo juridicamente viável, ajustando as regras do jogo, mas também socialmente justificável, permitindo-o em nome de um “interesse público” reformulado de modo a se equiparar ao lucro privado. Dessa forma, territórios inteiros que são mais visados ​​por empresas extrativistas também passam a estar sujeitos a militarização repressiva, deixando pouco espaço para discussão e, muito menos, para oposição.

As evidências coletadas durante nossas jornadas através de áreas de compensação de biodiversidade levantam uma questão fundamental de justiça (6).

Centenas de famílias estão perdendo seus meios de subsistência para permitir que as gigantes da mineração do mundo aumentem seus lucros. As empresas privadas e as organizações de conservação que apoiam esses projetos com suas marcas comerciais de sustentabilidade nem sequer se sentem obrigadas a informar as comunidades afetadas sobre as motivações reais das restrições impostas ao uso de seus territórios.

No entanto, mecanismos perversos, como a compensação da biodiversidade, são extremamente eficazes em uma coisa: desviar a atenção do quê para o como. Ao se concentrar em como tornar os negócios de sempre das empresas mais socialmente aceitáveis ou ecologicamente sustentáveis, impedem o surgimento de uma discussão verdadeiramente democrática e transparente sobre alternativas significativas a um modelo de desenvolvimento predatório que continua a beneficiar apenas alguns em detrimento de muitos.

É fundamental que não desperdicemos tempo precioso buscando maneiras de reformar um sistema falido, que deveria ser rejeitado como tal. Não podemos mais nos dar o luxo de distrações.

Giulia Franchi, gfranchi [at] recommon.org

Re:Common, http://www.recommon.org/

(1) http://wrm.org.uy/wp-content/uploads/2016/06/Article_Rio_Tinto_in_Madagascar.pdf

(2) http://wrm.org.uy/pt/livros-e-relatorios/proyecto-de-compensacion-por-perdida-de-biodiversidad-de-rio-tinto-en-madagascar-doble-acaparamiento-de-tierras-en-nombre-de-la-biodiversidad/

(3) target="_blank" rel="noopener">

(4) https://www.theguardian.com/global-development/2017/apr/07/madagascar-farmer-mining-firm-rio-tinto-agm-ousted-from-land-athanase-monja?mc_cid=c25820a07c&mc_eid=5e52a8e9f0

(5) http://www.theecologist.org/_download/403726/qmm biodiversity committee resignation statement_final.pdf

(6) http://www.recommon.org/eng/biodiversity-offsetting-license-destroy/