Mianmar: nova política de promoção dos direitos indígenas já está ameaçada

 

Os últimos anos têm sido um período de importantes mudanças em Mianmar, representado de forma mais significativa pela vitória da Liga Nacional pela Democracia (LND) (1) nas eleições de novembro de 2015. Muito menos divulgado fora do país, mas igualmente significativo, foi o lançamento, em janeiro de 2016, de uma nova Política Nacional de Uso da Terra (PNUT). A política foi lançada como parte da última grande iniciativa da administração que terminava seu mandato antes de transferir o poder à LND, em abril de 2016. A política propriamente dita foi resultado de um processo inédito de consulta e revisão que durou um ano, supervisionado em grande parte pelo antigo Ministério do Meio Ambiente, Conservação e Florestas, sob os auspícios de um órgão interministerial estabelecido pelo vice-presidente. Ausente da elaboração de outras políticas, a PNUT incluiu um total de pelo menos 91 consultas públicas, incluindo 17 consultas lideradas pelo governo e pelo menos 74 lideradas por organizações da sociedade civil em mais de 40 municípios, e incluiu quatro grandes seminários nacionais de consulta. (2) A política deverá funcionar como um documento orientador na elaboração de uma Lei Nacional de Terras e na reforma das leis existentes, como a antiquada Lei de Aquisição de Terras, de 1894, e a Lei de Gestão de Terras Vazias, de Pousio e Virgens, de 2012, que serve de base para a alocação de terras étnicas tradicionais a investidores.

O documento resultante é, em grande parte, um instrumento de conciliação contendo 13 partes centrais que delineiam a política do governo em diferentes temas, desde áreas amplas, como a administração e o planejamento do uso da terra, até partes mais específicas como a concessão de terras de propriedade do Estado; os procedimentos relacionados à aquisição de terras, reassentamento com indenização; tributação, monitoramento e avaliação de terras, bem como, sobretudo, direitos de uso da terra das nacionalidades étnicas, e igualdade de direitos entre homens e mulheres. A política vem sendo criticada por alguns ativistas da terra por não fazer o suficiente para parar concessões e investimentos relacionados à terra. No entanto, deve-se dizer que ela oferece importantes reformas na governança de terras, que tentam regulamentar, restringir e sugerir soluções de políticas para muitos dos atuais conflitos em torno da terra, incluindo a concentração e a alienação como resultado de concessões e arrendamentos pelo Estado das terras tradicionais de vários grupos étnicos. Na verdade, pode-se dizer que essa política representa uma mudança significativa no marco de governança de terras de cima para baixo, até então vigente em Mianmar. O forte reconhecimento da posse consuetudinária, se implementado na forma de lei, diferenciaria o país de alguns dos vizinhos mais autoritários, como Vietnã, Camboja e Laos.

A política propriamente dita é importante por conter os seguintes princípios básicos: “Reconhecer e proteger legalmente os legítimos direitos das pessoas à posse da terra, da forma em que são reconhecidos pela comunidade local, com atenção especial aos grupos vulneráveis, como pequenos agricultores, pobres, nacionalidades étnicas e mulheres”. Acima de tudo, a PNUT é significativa na medida em que, pela primeira vez, reconhece e protege as reivindicações tradicionais e comunitárias de posse de terras. Nesse sentido, a Parte 8, sobre os Direitos de Uso da Terra para Nacionalidades Étnicas, é a seção mais importante dedicada integralmente ao reconhecimento e à proteção da posse tradicional por grupos étnicos em Mianmar. O Artigo 64 estabelece que “os sistemas consuetudinários de posse da terra devem ser reconhecidos na Lei Nacional de Terras para garantir a conscientização, o cumprimento e a aplicação das práticas tradicionais de uso da terra das nacionalidades étnicas, o reconhecimento formal dos direitos consuetudinários de uso, a proteção desses direitos e a aplicação de mecanismos imparciais e acessíveis de solução de conflitos”.

A seção de direitos étnicos à terra continua nessa linha. Em seus 11 artigos, reconhece as práticas consuetudinárias de manejo de terras, protege as terras étnicas da alocação para concessões de terra, reconhece e protege os sistemas de cultivo itinerante, reconhece a necessidade de participação real das nacionalidades étnicas nas decisões relativas às suas terras e a importância dos procedimentos habituais de solução de conflitos, e estabelece princípios básicos para resolver conflitos históricos de terras e a situação de povos deslocados. Se implementadas em lei, essas mudanças representariam um afastamento monumental da atual governança das terras tradicionais em Mianmar, que funciona de cima para baixo.

É importante destacar que a Parte 9 da PNUT contém um capítulo específico sobre igualdade de direitos entre homens e mulheres, que foi incluído depois de muito debate e pressão por parte dos grupos locais da sociedade civil que lutam por igualdade de gênero em Mianmar. As mulheres são muito desfavorecidas no país, principalmente no que diz respeito à terra, em grande parte vista como domínio dos homens e cujos documentos de registro não costumam incluí-las. (3) A Parte 9 da PNUT não é longa, sendo composta de apenas dois artigos, mas o Artigo 75 enuncia oito direitos específicos de posse da terra que devem ser dados às mulheres, que incluem o direito de serem proprietárias individuais ou terem título compartilhado de propriedade, o direito à terra quando o cônjuge morre ou quando a propriedade é dividida em caso de divórcio, e o direito de participarem e representarem a comunidade nas decisões sobre a terra.

A PNUT de 2016 parece representar uma significativa mudança de rumo para o país, em direção a um sistema mais democrático e participativo de governança de terras, que respeite os direitos das comunidades rurais e étnicas que há muito se queixam da concentração de terras patrocinada pelo Estado. No entanto, em 11 de novembro de 2016, apenas dez meses após a aprovação da PNUT, uma comissão pouco clara, mas poderosa, do Parlamento Nacional, conhecida como Comissão Especial de Análise de Assuntos Jurídicos e Especiais (a partir daqui, Comissão Especial) submeteu um memorando ao Parlamento. O memorando, depois de mencionar o Artigo 37 da Constituição de 2008 (que foi redigido pelos militares e declara o Estado como o proprietário original de todos os recursos naturais acima e abaixo da terra), afirma que a PNUT continha seis “fatos indevidos e irrelevantes” que deveriam ser retirados do documento e seis itens correspondentes que “deveriam ser necessariamente acrescentados”.

Em consonância com a natureza explicitamente secreta da Comissão Especial, (4) o memorando não foi divulgado publicamente, apesar de ter sido submetido ao Parlamento Nacional. Na verdade, a existência do documento só foi conhecida semanas depois pela comunidade mais ampla ligada à reforma agrária através de uma breve menção no jornal local, publicado em língua inglesa, Myanmar Times, o que levou a uma investigação mais aprofundada por parte de agências doadoras. O documento é assinado por U Shwe Mann, presidente da Comissão Especial e com muito poder político no governo. Ex-general, presidente do partido que ocupava o governo anteriormente (USDP) e presidente da câmara baixa do Parlamento Nacional na administração anterior, U Shwe Mann e sua família têm interesses econômicos significativos em todo o país, incluindo investimentos em agronegócio. (5) É importante observar que ele é considerado amplamente um aliado próximo do líder da LND e Conselheiro de Estado Daw Aung San Suu Kyi. Na verdade, foi amplamente divulgado na imprensa, em 2015, que U Shwe Mann foi expurgado do anterior partido político do USDP por ser muito próximo do líder da LND. Enquanto perdeu sua cadeira no parlamento nas eleições de 2015, U Shwe Mann foi nomeado para a Comissão Especial pelo Conselheiro de Estado, no que foi considerado por alguns como uma recompensa por apoiar Daw Suu Kyi na tentativa de empreender a reforma constitucional na legislatura anterior. (6)

Observando os seis itens listados como “fatos indevidos e irrelevantes que devem ser excluídos”, o primeiro e o último são possivelmente os menos polêmicos e se referem ao estabelecimento de uma entidade de gestão de informações sobre a terra e à retirada de uma referência à realização de revisões quinquenais do documento da política, respectivamente. O primeiro item citado no memorando se refere ao Artigo 18 da PNUT, que sugere que haja uma entidade específica para a gestão de informações sobre a terra em todo o país. Ao recomendar que esse órgão não seja criado, a Comissão Especial aparentemente não conseguiu perceber que o órgão já existe na forma do projeto One Map Myanmar (Mapa Único de Mianmar), que visa consolidar dados e informações espaciais relacionados à terra entre diferentes ministérios. (7) No que se refere ao último item, a Comissão Especial alega que uma atualização periódica da política exigiria uma atualização periódica da lei, e que isso seria inviável, embora não sejam mencionadas as razões para esse parecer. Considerando-se a importância da política de terras e a atual situação em Mianmar, que sofre mudanças, parece ser inteiramente razoável rever, de cinco em cinco anos, tanto a política de terras quanto a lei.

A segunda questão a ser retirada pela Comissão Especial é a referência ao estabelecimento de tribunais especiais e um processo tripartite de arbitragem independente para a solução de conflitos de terras. Esse sistema de queixa independente é proposto no Artigo 42 da PNUT, precisamente porque o atual marco jurídico se mostrou insuficiente para resolver muitos conflitos de terras. O atual marco jurídico não reconhece as terras comunais das comunidades, a propriedade consuetudinária de terras ou o cultivo itinerante, e, de fato, a Lei de Gestão de Terras Vazias, de Pousio e Virgens, de 2012, acima mencionada, atualmente legaliza a concessão de terras comunais tradicionais e terras de pousio a investidores privados. Ao exigir a eliminação do órgão de arbitragem independente (que ainda deve ser estabelecido), a Comissão Especial já parece estar dando um claro sinal de que o status quo da hegemonia de terras do Estado deve continuar.

A terceira questão indicada para eliminação pela Comissão Especial talvez seja a mais preocupante: a Parte 8, sobre direitos à terra das nacionalidades étnicas em sua totalidade! Conforme explicado acima, a Parte 8 é o capítulo principal da PNUT que dá orientações explícitas sobre a segurança da posse em sistemas informais de propriedade da terra e dos regimes tradicionais de posse comunal, bem como do sistema de gestão de recursos naturais, que atualmente predomina na governança de terras para as nacionalidades étnicas em Mianmar, principalmente para as que estão nas áreas montanhosas das terras altas do país. Surpreendentemente, a Comissão Especial justifica a retirada da Parte 8 com base no fato de que a legislação atual (especificamente a Lei de Terras e Receitas, a Lei de Cidades e Povoados, a Lei de Gestão de Terras vazias, de Pousio e Virgens, e a Lei de Terras Agrícolas e Florestais) já respeita os direitos consuetudinários e que estes, na verdade, são geridos pelos respectivos departamentos. No entanto, as palavras “consuetudinário” e “tradicional” não aparecem nem uma vez na Lei Florestal (1992), na Lei das Terras Agrícolas (2012) ou na Lei de Terras Vazias, de Pousio e Virgens (2012). Além disso, esta lei é criticada por muitos grupos defensores dos direitos étnicos como sendo um dos principais métodos pelos quais o Estado em Mianmar facilita atualmente a transferência de terras étnicas tradicionais e recursos naturais para que investidores privados realizem projetos de desenvolvimento. Essa foi uma poderosa fonte de conflito entre o Governo da União de Mianmar e os grupos étnicos. Além disso, o Capítulo 8 é a única seção da PNUT que especificamente demanda uma nova Lei de Terras que reconheça o regime de posse consuetudinária e forneça os meios para registrar formalmente na lei os regimes consuetudinários de posse. A supressão do Capítulo 8 prejudicaria de forma significativa os regimes tradicionais de posse por pessoas das nacionalidades étnicas ao não levar em conta seus meios de subsistência e seus sistemas específicos de governança da terra.

A Comissão Especial também almeja retirar a proteção e o reconhecimento do cultivo itinerante, afirmando que o sistema agrícola tradicional praticado por grupos étnicos das montanhas “deteriora o ambiente natural”. A Comissão defende que o sistema seja “substituído por práticas agrícolas avançadas, como a agricultura em terras altas, a agricultura de terraceamento e a agrossilvicultura”. A demanda pela retirada de qualquer referência à proteção desse sistema tradicional de agrossilvicultura destaca uma fragilidade subjacente no entendimento da complexidade dos regimes de posse da terra em áreas rurais do país. Essa retirada também parece procurar manter a política de erradicação de cultivos itinerantes que não deu certo nem em Mianmar nem na região como um todo. Hoje em dia, os meios de subsistência das nacionalidades étnicas que vivem principalmente nas terras altas de Mianmar são muito frágeis, ​​devido à situação de insegurança sobre a posse nas áreas que não leva em conta os seus sistemas tradicionais de gestão de terras e recursos naturais. Esses sistemas não são reconhecidos nem protegidos na legislação atual do país e, a esse respeito, o Capítulo 8 da PNUT fornece uma orientação global para o desenvolvimento de futuros marcos de governança de terras em torno do contexto específico das nacionalidades étnicas que residem nas terras altas, mas também os direitos de titulares de posse consuetudinária. As demandas pela retirada da referência à proteção e ao reconhecimento de sistemas de cultivo itinerante, bem como a supressão dos Direitos à Terra das Nacionalidades Étnicas, provavelmente serão percebidas como uma traição significativa ao caráter aberto e participativo do processo de consulta da PNUT, que durou um ano. Além disso, de acordo com observadores de Mianmar entrevistados por pesquisadores de campo do WRM, essa movimentação representa um significativo risco de prejudicar a confiança junto a OSCs étnicas e representantes de grupos étnicos armados que estão trabalhando com o governo para negociar um cessar-fogo nacional e um acordo de paz para os conflitos que atormentaram o país, de tempos em tempos, nas últimas cinco a seis décadas. Isso se torna ainda mais importante quando o manifesto eleitoral da LND se compromete a “resolver problemas entre grupos étnicos através de um diálogo baseado no respeito mútuo”. (8)

Se não bastasse a proposta de retirada dos direitos étnicos à terra e da referência à proteção e ao reconhecimento da agricultura itinerante, a Comissão Especial também pede a supressão de qualquer referência à igualdade de direitos entre homens e mulheres no que diz respeito à posse da terra, mesmo na Parte 8 (a), dos princípios básicos mencionados anteriormente, e presumivelmente também na Parte 9, sobre “Igualdade de Direitos entre Homens e Mulheres”. Na lógica bizarra da Comissão Especial, o pedido de retirada dessas medidas se baseia no receio de que a unidade étnica seja afetada, supostamente porque os grupos étnicos querem continuar discriminando as mulheres em termos de propriedade da terra. Não se apresenta nenhuma evidência para sustentar essa afirmação, que parece se basear mais nas opiniões pessoais dos membros da Comissão Especial (todos homens) e não em qualquer tipo de evidência empírica. Como as atividades de celebração do Dia Internacional da Mulher, em 8 de Março, sublinharam mais uma vez em todo o mundo, a situação atual dos direitos das mulheres à terra, incluindo em Mianmar, mostra que é necessário sensibilizar agências governamentais, em Mianmar e em outros lugares, com relação a esses direitos na governança da terra.

Depois da declaração de eliminação dos itens mencionados, a Comissão Especial apresenta seis questões detalhadas que devem ser acrescentadas à política atual. Algumas delas dizem respeito ao funcionamento de diferentes entidades administrativas do governo. No entanto, o tom avassalador de muitas das mudanças sugeridas está relacionado à manutenção dos interesses empresariais e à capacidade do Estado de adquirir à força todas as terras consideradas necessárias. Os argumentos são melhor resumidos pelo seguinte raciocínio retirado da cláusula sexta do memorando: “Quanto ao Estado, o proprietário original de todos os recursos de terra, se necessário, tem plenos direitos de adquirir e administrar terras de interesse público que devam ser incluídas na política. A mudança no uso da terra (de agrícolas para outros tipos) e a monopolização aumentam em muito os seus preços e, consequentemente, os investidores nacionais e estrangeiros enfrentam problemas. Portanto, os governos da União, estaduais ou regionais precisam adquirir terras pagando indenizações com valor fixo, a fim de fazer uso da terra de forma eficaz e frutífera”.

Atualmente, não se sabe como vai se desenrolar o questionamento da Comissão Especial aos desejos de reforma agrária da maioria da população, que foram descritos em um amplo processo de um ano. O memorando da Comissão Especial parece estar lentamente ganhando terreno no aparelho governamental. No entanto, a questão que se coloca é qual o impacto de uma tentativa do governo de levar a cabo essas medidas unilateralmente, passando por cima da confiança e da boa vontade que foi desenvolvida entre o governo e os cidadãos, a sociedade civil e os grupos de nacionalidades étnicas que participaram no processo de consulta de um ano sobre a PNUT. Além disso, será que esse movimento não seria considerado uma bofetada na cara dos esforços ainda incipientes em um processo nacional de consulta em torno da formulação da política e da lei? Visto do lado de fora, o ataque à PNUT aparece como parte de uma batalha mais ampla entre os que desejam terra e reforma agrária e os interesses empresariais que querem manter o status quo.

Mesmo assim, o que talvez seja mais preocupante nesse caso é que um órgão do parlamento, em grande parte não eleito, mas misteriosamente poderoso, pareça exercer influência significativa sobre a agenda da reforma agrária em Mianmar. O governo do país permitirá que os desejos do povo sejam anulados por uma instituição tão secreta?

 

Artigo compilado pelo Secretariado do WRM, com base em informações de pesquisadores de campo do WRM e informações citadas abaixo.

(1) LND significa Liga Nacional para a Democracia. O partido foi fundado em 1988 e atualmente governa Mianmar, tendo Daw Aung San Suu Kyi como seu Presidente e Conselheiro de Estado do país.

(2) Forbes, E., (2017). Civil Society Participation in Land Policy Making: the innovative experience of Myanmar’s pre-consultation on the National Land Use Policy. Mekong Regional Land Governance Project. Vientiane e Yangon.

(3) Namati, (2016). Gendered aspects of land rights in Myanmar: Evidence from Paralegal Casework. P. 5-6.

(4) http://frontiermyanmar.net/en/law-reform-a-daunting-challenge

(5) http://www2.irrawaddy.com/article.php?art_id=14151&page=3

(6)http://www.mmtimes.com/index.php/national-news/nay-pyi-taw/18853-thura-u-shwe-mann-appointed-to-head-own-legislative-commission.html

(7) https://cdeweb4.unibe.ch/Pages/News/149/OneMap-Myanmar-New-CDE-project-launched.aspx

(8) http://www.burmalibrary.org/docs21/NLD_2015_Election_Manifesto-en.pdf