Por que os governos devem rejeitar os esforços de mercantilização da terra orquestrados pelo Banco Mundial e pelos Estados Unidos

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Oakland Institute

A narrativa do desenvolvimento continua sendo ressuscitada, apesar de seu papel no estímulo à crise atual e na destruição dos meios de subsistência de milhões de pessoas, que acabaram expulsas de suas terras e empobrecidas. Os interesses dos Estados Unidos, com seu imenso poder financeiro e político sobre instituições como o Banco Mundial e o FMI, têm papel importante nisso.

O vírus da Covid-19 eclipsou por algum tempo a crise climática e ambiental cada vez mais intensa que o mundo enfrenta. Índices alarmantes de desmatamento, desertificação, degradação ambiental e poluição continuam ameaçando a biodiversidade do nosso planeta, bem como a saúde e a subsistência de bilhões de pessoas.

No entanto, em vez de tomar medidas efetivas, governos, corporações e instituições internacionais estão “dobrando a posta”, querendo explorar mais terras por meio de uma narrativa baseada em eufemismos, que diz que lhes dará “usos produtivos” em nome do “progresso” e do “desenvolvimento” econômicos. Em todo o mundo, os governos são pressionados a convidar investidores internacionais para que explorem mais terras e recursos com o objetivo de extrair madeira nativa, criar gado, plantar árvores para produzir óleo de dendê, madeira e outros cultivos, bem como mineração, petróleo e gás.

No entanto, essa expansão enfrenta obstáculos: os regimes de posse da terra que prevalecem em muitos países e os direitos que eles garantem às pessoas que vivem nessas terras cobiçadas. Até 65% da área terrestre do mundo ainda são administrados por comunidades em sistemas consuetudinários. (1) Povos indígenas e comunidades locais provaram ser gestores eficazes de suas terras, manejadas por meio de diversos sistemas de posse coletiva e comunitária. Os territórios indígenas tradicionais cobrem 22% das terras do mundo, que abrigam impressionantes ​​80% da biodiversidade global. (2) Muitos países anteriormente colonizados adotaram sistemas duais de posse da terra, que reconhecem as leis fundiárias consuetudinárias ao mesmo tempo em que definem todas as terras como propriedade do Estado. (3) Essa situação é vista como uma limitação para investidores e empresas. Como disse o Banco Mundial, “direitos [à terra] não formalizados representam dificuldades e riscos para os investidores” (4) e, no caso da África, o continente está sendo “atrasado pela confusão na propriedade da terra”. (5)

Estimulando a pobreza

Um relatório recente do Oakland Institute, intitulado “Estimulando a pobreza: a pressão global para ‘desbloquear o potencial econômico da terra’” (Driving Dispossession: The Global Push to “Unlock the Economic Potential of Land”), (6) explica as várias maneiras pelas quais os governos – voluntariamente ou sob pressão de instituições financeiras e dos chamados países doadores – tentam privatizar terras e disponibilizá-las para exploração. Isso inclui reformas agrárias, mudanças em leis e regulamentações, uso de novas tecnologias para registro de terras, bem como eliminação de salvaguardas que estão em vigor para proteger os povos indígenas e o meio ambiente.

É importante ressaltar que o relatório mostra o papel importante que os interesses dos Estados Unidos cumprem nesses esforços, por meio de vários canais. A Millennium Challenge Corporation (MCC), uma entidade do governo dos Estados Unidos cuja missão declarada é “reduzir a pobreza por meio do crescimento”, tem um histórico documentado de pressionar os países a transferir terras de pequenos agricultores a investidores, para ser usadas na agricultura industrial. No Sri Lanka, o convênio da MCC pretende mapear e registrar até 67% do país para “promover transações que possam estimular o investimento e aumentar o uso das terras como ativo econômico”.

Assim como a MCC – e em contradição com sua própria pesquisa, que há muito reconheceu o valor dos sistemas consuetudinários – a agência de desenvolvimento dos Estados Unidos (USAID) também cumpre um papel importante no financiamento e na promoção de projetos privados de titulação de terras em todo o mundo. As grandes empresas estadunidenses também estão cada vez mais envolvidas, apresentando uma tecnologia chamada blockchain como a solução mágica para garantir a posse da terra. A blockchain é um registro digital que mantém o controle das transações por meio de “blocos” (blocks) de informações, que armazenam dados como data, hora, valor e participantes de uma transação em uma “cadeia” (chain) cronológica. É um livro de registros disperso, o que significa que sempre que ocorre uma transação, ela deve ser confirmada por uma rede de milhares ou possivelmente milhões de computadores em todo o mundo antes de ser registrada como um bloco na cadeia. Isso torna praticamente impossível alterar transações retroativamente. (7)

Os defensores do uso da tecnologia blockchain para gestão de terras argumentam que ela tem potencial para melhorar a segurança e a transparência dos registros de terras ao armazenar todas as informações sobre os limites das propriedades e seus proprietários em uma fonte online inalterável. No entanto, a aplicação da tecnologia exige que os países adotem sistemas de propriedade privada da terra, o que demandará registros e digitalização.

O programa de titulação de terras usando a blockchain em Zâmbia, capitaneado por uma subsidiária da empresa estadunidense de vendas online Overstock.com, demonstra que essa tecnologia é usada, na verdade, para privatizar terras e acessar recursos naturais. Patrick Byrne, ex-diretor da Overstock.com deixou claras as suas motivações ao dizer que o objetivo do projeto era desbloquear trilhões de dólares em reservas minerais globais que são inacessíveis devido a sistemas pouco claros de governança fundiária. Em 2018, a Overstock.com assinou um acordo com o Banco Mundial para colaborar em projetos semelhantes em dezenas de outros países, mas até agora o Banco se recusou a divulgar esse acordo.

Os Estados Unidos também têm um poder financeiro e político imenso sobre instituições internacionais como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI), que promovem políticas e regulamentações para privatizar os bens comuns em benefício do setor privado. Por exemplo, o FMI condicionou o apoio financeiro de que a Ucrânia precisava desesperadamente à criação de um mercado de terras. Após anos de pressão internacional e em meio à pandemia de Covid-19, o país adotou uma lei criando um mercado de terras em março de 2020, apesar da oposição de mais de 70% da população.

Quando se trata de se apropriar e privatizar terras no Sul Global, o Banco Mundial é um instrumento fundamental da agenda corporativa defendida pelos Estados Unidos, que são o principal doador da instituição.

Financiado pela Fundação Bill & Melinda Gates, pelos Estados Unidos e pelo Reino Unido, o programa Possibilitando o Negócio da Agricultura (Enabling the Business of Agriculture, EBA), do Banco Mundial, deveria apoiar a Nova Aliança pela Segurança Alimentar e Nutrição, uma iniciativa lançada pelo G8 para promover o desenvolvimento agrícola liderado pelo setor privado na África.

Em 2019, um relatório do Instituto Oakland, intitulado The Highest Bidder Takes It All: The World Bank’s Scheme to Privatize the Commons (Quem dá mais leva tudo: o esquema do Banco Mundial para privatizar os bens comuns), denunciou o ataque agressivo e sem precedentes aos direitos fundiários impulsionado pelo projeto, que promoveu a agricultura industrial sacrificando agricultores, pequenos criadores de animais e Povos Indígenas. Por meio do EBA, o Banco recomendou que os governos formalizassem os direitos de propriedade privada, facilitassem a venda e o arrendamento de terras para uso comercial, sistematizassem a venda de terras públicas em leilões e melhorassem os procedimentos de desapropriação para das às terras o “melhor uso”. Ignorou-se o fato de que bilhões de pessoas vivem e trabalham nessas terras, que são essenciais para sua subsistência, além de representar bens ancestrais com profundo significado social e cultural. Nossas descobertas causaram indignação em todo o mundo e – fato muito importante – o Banco Mundial acabou descartando o novo indicador de terras no relatório EBA de 2019. Em seu lugar, reconheceu a importância dos direitos consuetudinários à terra e anunciou que as salvaguardas para proteger esses direitos deveriam ser “uma prioridade do desenvolvimento”. (8) O descarte desse indicador é uma vitória para bilhões de pequenos agricultores, pequenos criadores de animais e povos indígenas de todo o mundo, que dependem de suas terras para sobreviver, bem como para as mais de 280 organizações da sociedade civil que aderiram à campanha Our Land Our Business para se opor ao Banco Mundial.

No entanto, além das mudanças retóricas mencionadas anteriormente, as prescrições do Banco sobre privatização de terras ainda são aplicadas a países específicos de diferentes formas, e a instituição continua financiando programas que promovem a agricultura industrial e comprometem os direitos consuetudinários à terra. Por exemplo, na República Democrática do Congo (RDC), o Banco Mundial financiou e orientou o desastroso plano do governo de estabelecer 22 parques agroindustriais em todo o país, resultando em grilagem de terras e no desperdício de cerca de 100 milhões de dólares em verbas públicas gastas na implementação do primeiro parque-piloto. (9)

O apoio aos parques agroindustriais segue o modelo de desenvolvimento promovido pelo Banco Mundial em todo o mundo, que incentiva polos de crescimento, corredores de desenvolvimento e zonas econômicas especiais como instrumentos de atração de investimentos estrangeiros. Em vez de proteger os direitos das comunidades à terra, os governos são estimulados a operar com base no pressuposto profundamente equivocado de que o “desenvolvimento” só pode ser alcançado se os interesses empresariais tiverem acesso irrestrito aos recursos, conforme incentivado pelo Banco Mundial e pelos chamados países doadores. A privatização de terras estatais e comunitárias sob o pretexto de “desbloquear” o potencial da terra atende às necessidades desses interesses, à custa dos meios de subsistência de milhões de pessoas. Estimulando a criação de “mercados de terras”, o Banco não pode ignorar que, em um sistema de mercado onde a terra nada mais é do que uma mercadoria, as empresas têm poder para inviabilizar a vida das pessoas, resultando em expulsões e expropriações, concentração da propriedade da terra nas mãos dessas empresas e degradação ambiental.

Essa narrativa do desenvolvimento continua sendo ressuscitada, apesar do papel que cumpriu na atual crise climática e ambiental e na destruição dos meios de subsistência de milhões de pessoas, resultando em expulsões e pobreza. O fracasso do modelo econômico neoliberal nunca foi tão claro.

Essa mercantilização contínua da terra deve ser enfrentada com ações firmes para interromper e reverter a privatização generalizada dos bens comuns em nível mundial. Existem alternativas cuja eficácia é comprovada, e elas foram implementadas com sucesso em todo o mundo. As terras e águas indígenas representam 80% da biodiversidade mundial, e cada vez mais as comunidades locais e os indígenas são vistos como gestores eficazes dessas áreas. Eles permanecem como a linha final de defesa contra a apropriação de terras e as práticas destrutivas de governos e corporações que convertem propriedades familiares, pastagens e florestas em plantações industriais de monocultivos, grandes fazendas e minas a céu aberto.

É preciso demolir o mito de que somente títulos privados podem garantir a posse. Em vez de apagar a governança local e negar a autonomia indígena, os governos devem construir mecanismos que incorporem um leque diverso de sistemas de propriedade e governança, e tratar de estabelecer um caminho que sirva ao povo, em vez de retirar a terra dele em nome do lucro das corporações.

Frederic Mousseau
Diretor de Políticas, The Oakland Institute

(1) Rights and Resources Initiative. Who Owns the World’s Land? A global baseline of formally recognized indigenous and community land rights. Setembro de 2015. (acessado em 8 de julho de 2018).
(2) Food and Agriculture Organization. “6 ways indigenous peoples are helping the world achieve #ZeroHunger." (acessado em 25 de março de 2020). Os sistemas consuetudinários de posse assumem uma variedade de formas, que podem refletir problemas sistêmicos das sociedades, como discriminação com base em gênero e em grupos minoritários. Mas o objetivo das chamadas reformas agrárias empreendidas por governos em todo o mundo não é enfrentar esses problemas sistêmicos.
(3) Mousseau, F. The Highest Bidder Takes it All: The World Banks Scheme to Privatize the Commons, lançado pelo Instituto Oakland como parte da campanha Our Land, Our Business, composta por 280 organizações em todo o mundo, exigindo o fim do Programa Enabling Business of Agriculture program
(4) UNCTAD & World Bank. Respecting Land Rights and Averting Land Disputes. Responsible Agricultural Investment (RAI) Knowledge Into Action Note, n. 11. 2018. (acessado em 8 de janeiro de 2019).
(5) “World Bank: Africa held back by land ownership confusion.” BBC, 23 de julho de 2013. (acessado em 7 de janeiro de 2019)
(6) The Oakland Institute, Driving Dispossession: The Global Push to “Unlock the Economic Potential of Land", 2020.
(7) saiba mais em Boletim 247 do WRM, Blockchain e contratos inteligentes: as mais recentes tentativas do capital de se apropriar da vida na Terra, 2020.
(8) World Bank. Enabling the Business of Agriculture 2019. Dados sobre salvaguardas em direitos fundiários
(9) The Oakland Institute, The Bukanga Lonzo Debacle: The Failure of Agro-Industrial Parks in DRC