REDD e direitos: o bom, o mau e o feio

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O fundamento do pensamento crítico, então, está na desconformidade

com o estado de coisas existente e na busca de alternativas,

a partir das caracterizações da situação atual, cujas causas podem

obviamente ser buscadas no passado” (1)

in memoriam Hector Alimonda

A proposta de incluir as florestas nas negociações climáticas da ONU completará 10 anos. Desde 2007, quando foi realizada a conferência climática em Bali, na Indonésia, no âmbito do avanço do mecanismo de REDD+ (2), a questão relativa aos direitos humanos, dos povos indígenas, das mulheres, das comunidades locais, entre outros, tem sido um ir e vir de atores, roteiros, cenários, elencos, comédias, mas, acima de tudo, têm prevalecido os efeitos especiais e a arte da maquiagem.

O BOM

Deve-se reconhecer que, durante esses anos, o fato de se ter abordado a questão dos direitos dos povos diante de um problema tão grave quanto a mudança climática já é algo bom. Aqueles de nós que erguemos nossas vozes durante vinte anos, clamando por soluções verdadeiras para o aquecimento global – como deixar hidrocarbonetos fósseis no subsolo – sempre apelamos aos direitos dos povos que vivem onde esses combustíveis são extraídos, aos direitos das comunidades onde foram aplicados projetos dentro do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL) ou outros mecanismos de compensação de carbono, como também aos direitos da natureza.

Assim, uma vez que o mecanismo do REDD+ começou a ser discutido nas negociações sobre o clima, muitas organizações, principalmente em nível internacional, pressionaram pela inclusão da expressão “direitos dos povos indígenas”. Essa pressão acabou sendo direcionada, em dezembro de 2008, à proposta “Sem Direitos, sem REDD+”. Sem dúvida, porém, essas exigências tomaram outro rumo nos anos seguintes.

Um exemplo é o do direito ao território, que é um direito coletivo reivindicado há décadas, principalmente o da titulação de terras e territórios. Embora este último seja alheio às práticas consuetudinárias de demarcar e organizar os territórios de comunidades, foi necessário reivindicá-lo diante da investida dos Estados. Nesse contexto, o mecanismo do REDD+ e os programas de REDD+ em nível nacional estão claramente distorcendo esse direito essencial dos povos, uma vez que, para que o negócio do carbono funcione, deve se dar um uso privado à propriedade coletiva, já que a transação de créditos de carbono tem que deixar claro quem é dono de quê, em que quantidade e, nesse caso, onde e em que extensão. Os compradores terão um título de propriedade sobre o carbono que é encontrado em uma determinada– delimitada e titulada – quantidade de terras cobertas por florestas. Seguir desse modo, a titulação da terra é promovida e usada pelos mercadores de carbono para oferecer aos compradores uma garantia de propriedade do carbono contido na área.

Portanto, o lado bom do fato de os direitos humanos e dos povos fazerem parte da base de qualquer medida contra a mudança climática foi corrompido.

O MAU

Aqueles que dominaram as negociações sobre o clima, desde atores empresariais e financeiros até ONGs de conservação e representantes governamentais hegemônicos, compreendem e assumem a questão dos direitos de uma maneira totalmente diferente dos povos indígenas e outras comunidades locais. Os direitos humanos e da natureza têm sido submetidos ao capital e a supostos direitos empresariais e financeiros. Os espaços de lobby e negociação empresarial que cooptam as cúpulas das mudanças climáticas garantiram que os interesses corporativos prevalecessem sobre o senso do comum, seguindo um roteiro em que eles são super-heróis salvadores do planeta. Assim se estabelece um claro conflito, porque o dinheiro, como capital, tornou-se sujeito de direitos, acima do humano e de todas as formas de vida.

O Acordo de Paris, assinado nas negociações climáticas de 2016, na COP21, apresenta uma nova cenografia, mas com os mesmos protagonistas. Entre outras desvantagens, ratifica (no Art. 5) a inclusão das florestas “para conservar e fortalecer, segundo a necessidade, os sumidouros e reservatórios de gases de efeito estufa”. Isso irá aprofundar a perda de direitos dos povos em nível local e, com a possibilidade de se compensarem as emissões através de projetos de REDD+, continuará aumentando a extração e a queima de petróleo, gás e carvão, aprofundando o problema das mudanças climáticas. O Acordo de Paris, ao estilo da Comédie-Française, com a sua trupe permanente de atores, perpetua a distribuição de quotas de poluição e a possibilidade de fazer negócios globais entre quem mais polui, não só com empresas, mas também entre Estados.

Com o Acordo de Paris, a lógica de entrega de florestas para compensar a poluição se estabelece em caráter planetário. Embora inclua plantações florestais, agricultura e solos, ou seja, qualquer vegetação ou terra que possa conter carbono, o REDD+  volta seu olhar principalmente sobre florestas da África, da Ásia e da América Latina, localizadas principalmente em sistemas de propriedade coletiva dos povos indígenas e que são, por esse motivo, as mais bem cuidadas e mais extensas.

O REDD+ transforma os povos indígenas e a natureza em provedores permanentes de serviços ambientais ou ecossistêmicos, razão pela qual também se pode afirmar que o REDD+ não só contribui para mais perda dos direitos dos povos e agrava a mudança climática, mas também viola os direitos da natureza, submetendo-a – como faz com os povos – a processos de escravidão, servidão e apropriação de suas criações, ao converter os ciclos biológicos, as funções, a recriação da vida e os ciclos reprodutivos em trabalho e mercadorias que podem ser comprados e vendidos.

O FEIO

Entre os objetivos dos promotores do REDD+ está o de tentar diminuir as resistências à implementação de projetos em territórios indígenas, principalmente, e o de convencer as organizações para que o mecanismo de REDD+ seja bem visto e aceito.

Assim sendo, como um efeito especial cinematográfico, os direitos humanos e dos povos foram desaparecendo ou sofrendo metamorfoses nas negociações climáticas. Os direitos se transformaram em padrões; os direitos das mulheres foram transformados em cautelas voluntárias; outros direitos se converteram em “participação e envolvimento em relatórios e monitoramento”; direitos coletivos e territoriais tornaram-se “governança florestal”; a proteção e a obrigatoriedade dos direitos passaram a ser apenas promoção ou algo que “será levado em consideração”; os direitos se transformaram em “estabelecimento de modelos operacionais para cumprir os salvo-condutos e consolidar os benefícios mútuos, isto é, benefícios não relacionados ao carbono”, conforme indicado pela iniciativa REDD+ Indígena, que a Coordenadora de Organizações Indígenas da Bacia Amazônica (COICA) sustenta em nível internacional (3)

Em suma, a inclusão dos direitos humanos no REDD+ não é mais do que uma maquiagem para torná-lo bonito, conter a rebelião dos povos e esconder a verdade por trás desses projetos.

Em vista disso, deve-se proteger o direito dos povos à resistência, a dizer NÃO a projetos de compensação de carbono, a não serem expropriados, a não verem restritos o acesso aos seus territórios e seu uso tradicional ou a não serem usados para que empresas de petróleo ou mineração possam violar os direitos de outra comunidade em algum outro lugar do planeta. As organizações e as comunidades indígenas se veem manipuladas pelo mercado internacional para que a máquina continue funcionando.

EPÍLOGO

Para terminar, devemos definir melhor a que nos referimos quando dizemos direitos.

Mesmo sabendo que são inerentes a sujeitos – humanos e não humanos – os direitos não são estáticos. Os direitos são um processo: histórico, político, social e natural. Eles são uma questão de dignidade e estão surgindo como reação à opressão, à discriminação e à perda de meios de vida e subsistência. Eles são um ideal a conquistar, e não são concedidos pela ONU, nem muito menos pelo Banco Mundial ou pelas transnacionais da conservação.

O REDD+ pressupõe que os direitos sejam uma realidade já conquistada, concedida pelos operadores desse tipo de projeto, e os distorce quando os considera uma questão de governança, burocracia ou engenharia institucional. Também perverte os direitos porque os “universaliza” dentro de um quadro de modernidade ocidental capitalista; hoje em dia, os direitos, por circunstâncias históricas e políticas, estão imbuídos de pluriversalidade cultural e natural.

Quando se inclui o conceito de direitos nas negociações climáticas, como no binômio REDD-direitos, prioriza-se o benefício ao mercado livre ao mesmo tempo em que se anulam os contextos culturais e políticos dos povos de onde esse tipo de programas e projetos é desenvolvido.

A proposta de incluir direitos no REDD+ deveria ter exigido o direito à prática real de direitos coletivos que sejam alimentados, segundo a visão do mexicano Enrique Leff, pelos “direitos do ser cultural à construção de diversos mundos de vida”, pelos “direitos de reinventar suas identidades culturais” ou pelos “direitos de reconstruir mundos de vida e projetar futuros possíveis”. (4) O REDD+ impede claramente o exercício desses direitos.

Ivonne Yánez,  ivonney [at] accionecologica.org

Acción Ecológica

(1) CLACSO. Pensamientos críticos contemporáneos: análisis desde Latinoamérica. Piedrahita C., Díaz A., Vommaro P. (comp.). Bogotá, 2015.

(2) “Por ejemplo REDD+ aspira a cubrir 4.000 millones de hectáreas, es decir el 31 por ciento de la superficie de la tierra (no marina)”. Tribunal por los Derechos de la Naturaleza. Apresentação REDD+ COMO UN CASO DE VIOLACIÓN DE LOS DERECHOS DE LA NATURALEZA. Lima, 2014.

(3) CBC-GIZ. REDD+ INDÍGENA EN EL PERÚ: Perspectivas, avances, negociaciones y desafíos desde la mirada de los actores involucrado. Pinto, V. Molero, M. (Eds). Lima, fevereiro de 2014.

(4) Leff, Enrique. “Las relaciones de poder del conocimiento en el campo de la ecología política: una mirada desde el sur”. In: ECOLOGÍA POLÍTICA LATINOAMERICANA. VOLUMEN I. Ecología política latinoamericana: pensamiento crítico, diferencia latinoamericana y rearticulación epistémica. CLACSO. Héctor Alimonda et al. (Eds). Buenos Aires 2017.