Sobre os projetos de carbono na Amazônia: por que contratos que duram uma geração?

Imagem
B268_carbon_Amazon

“Compositor de destinos
tambor de todos os ritmos
tempo, tempo, tempo, tempo
Entro em um acordo contigo
Tempo, tempo, tempo, tempo...”

Oração ao tempo - Caetano Veloso, compositor e cantor da música popular brasileira, de grande ativismo durante a ditadura militar que ocorreu no Brasil de 1964 a 1985.

 

Nos dias mais quentes da história humana, o ano de 2023 marcou a Amazônia com uma das secas mais severas de sua história. Cidades acessíveis apenas via navegação ficaram isoladas, com cenas apocalípticas de embarcações paradas onde havia um farto rio de peixes, banzeiros e botos que agora agonizam. Diante disso, proponho uma discussão sobre clima e questão geracional à luz das discussões sobre o que o nosso tempo chama de mercado de créditos de carbono.

A Amazônia brasileira tem sido palco de um número crescente de projetos conservação da floresta voltados para a geração de créditos de carbono, também conhecidos como projetos REDD (Redução das Emissões por Desmatamento e Degradação florestal). Ao supostamente evitar o desmatamento de enormes áreas, privadas ou comunitárias, da floresta amazônica, os donos desses projetos em tese reduzem as emissões de gases do efeito estufa, e assim adquirem o direito de vender créditos de carbono para empresas poluidoras no mercado internacional.

Um aspecto importante dos debates no âmbito da comercialização de créditos de carbono é o da proposição de contratos de longa duração entre comunidades tradicionais e empresas intermediadoras de carbono. (1) São propostas de contratos que variam de 30 a 40 anos de duração, num contexto de muitas incertezas. Nesse sentido de dúvidas e posicionamentos que pedem cautela, cito aqui a publicação das advogadas Maria Victoria Hernandez Lerner e Juliana Miranda, que analisaram a avaliação da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) sobre contratos de carbono apresentados a diversos povos indígenas no Brasil. (2) Elas apontaram que estes: a) impedem os povos indígenas de executarem suas práticas tradicionais como a plantação de roças e corte de árvores para subsistência sem prévia autorização da empresa; b) são contratos que perpassam por mais de uma geração e não preveem cláusulas de rescisão contratual, caso haja algum prejuízo para a comunidade indígena; c) são acordos firmados por poucos indivíduos, sem a devida participação e sem o consentimento livre, prévio e informado dos grupos afetados; d) possuem cláusulas abusivas de modo geral.

Os questionamentos da Funai nos oferecem pistas para que nossas próprias perguntas surjam e assim possamos compreender que os contratos de créditos carbono hoje colocados à mesa das comunidades são antes de tudo uma questão intergeracional.

Primeiramente, é necessário que entendamos que os plantios de roças, o uso de madeira para as estruturas dos lares e desbastes de plantas para melhorar a produção de plantas como o açaizeiro é algo exercido por comunidades tradicionais há milênios, escapulidas suas práticas por nossa descendência. O fogo, por exemplo, tem sido utilizado de maneira controlada por inúmeros povos originários e comunidades quilombolas para a limpeza de pequenas áreas, cultivos e favorecimento de espécies consideradas úteis, na forma daquilo que conhecemos como sistemas agroflorestais. (3) Os quintais florestais desta maneira talvez sejam a marca deste legado espalhado nas comunidades amazônicas em hortas plantadas em canoas, açaizeiros, paus-mulato e jambeiros ao redor das casas, aqui e acolá pés de urucum e cebolinha.

Considerando assim esta caminhada histórica do povo da floresta, como tratam os projetos de carbono a relação das famílias com o uso do fogo? É um inimigo? É estranho ler a notícia que uma das maiores empresas petroleiras do mundo, a Shell, investe pesado em empresas intermediadoras de projetos de carbono na Amazônia (4), sendo que muitos projetos desse tipo têm atribuído o problema do desmatamento a roças de 1 tarefa, equivalente a 0,25 hectares, enquanto a emissão de gases de efeito estufa por parte de empresas petroleiras é incomparavelmente maior. Não é um tratamento desproporcional? Não faria mais sentido que empresas como a Shell fossem obrigadas a tomar medidas concretas para reduzir as emissões de gases de efeito estufa, que aceleram a mudança do clima e deixa o planeta mais hostil aos seres vivos?
 
No segundo argumento que traço contra os contratos de créditos de carbono entre comunidades e empresas por 30 anos ou mais, tomo emprestado a dúvida exposta pela Funai, segundo Lerner e Miranda (5), sobre o envolvimento de mais de uma geração nos projetos. Considero extremamente pertinente o questionamento ao conceituar o capitalismo não como um sistema econômico e sim como uma “ordem social”. (6) Segundo a filósofa Nancy Fraser, esta ordem (cujo motor seria a obtenção de ganhos acumulativos) apodera-se e alimenta-se daquilo que precisa para funcionar a partir da riqueza expropriada à natureza e aos povos subjugados. Uma ordem que aos poucos mina as estratégias locais de cuidado e criatividade dos trabalhadores e trabalhadoras, subvalorizando ou mesmo negando-as por completo. Na relação entre empresas, comunidades e projetos de carbono, como não pensar o quão perigoso é para a tradicionalidade local que haja contratos que irão influenciar uma geração inteira ao final do primeiro ciclo de 30 anos de contrato, cujo poder de influência e informações dos territórios e famílias podem estar nas mãos de empresas intermediadoras e multinacionais? Quando imagino que uma criança nasça, cresça, se torne adolescente e vire um adulto em um território sob cláusulas (7) de um contrato de créditos de carbono, vem a preocupação sobre as condições de vida destas futuras pessoas. Já ouvi de empresários do setor que os investimentos das empresas na implantação do sistema de crédito de carbono precisam ter a garantia que a floresta estará lá para cobrir os custos, mas quem é afinal o detentor justos dos créditos? A quem pertenceria se não às comunidades? Por que submeter-se a 30 anos de cumprimento de cláusulas sem garantir o direito de escuta para os que virão?

Em meu terceiro argumento, junto as provocações feitas pela Funai quanto aos acordos firmados por poucos indivíduos, sem a devida participação das comunidades e com cláusulas abusivas. Exponho um problema na configuração de muitas comunidades do estuário amazônico em organizar-se: talvez o formato de presidência, tesouraria e secretaria, imposto pela legislação estabelecida e que predomina como poder decisório das associações comunitárias, não esteja mais à altura dos desafios atuais. (8) Ressalto que vi e convivi com extraordinárias lideranças comunitárias que muito contribuíram com os processos organizativos de suas comunidades e estes mandatos na história não podem desintegrar-se, há de se respeitá-los. Porém, assim como o poder hegemônico se transmuta (9) para continuar e ampliar sua influência e ganhos, a sociedade organizada também pode se modificar e reinventar. Como exemplo, em 2019 e 2020, admirei-me da organização social dos conselhos comunitários de Concosta e Cajambre, no Pacífico Colombiano, que apresentavam uma consistente participação de mulheres e jovens nas tomadas de decisão que direcionavam as tarefas do representante legal, a pessoa eleita para cumprir as tarefas burocráticas. Lá existem também tesouraria e secretaria, mas a impressão que tive é que estão em permanente estado de assembleia, o que ajuda bastante a orientar o representante legal e a administração da associação. Tal modo de condução associativa é determinante para proteger as lideranças do assédio e intimidações do capital. Entendo que quanto maior a escuta intergeracional e de gênero, maior a capacidade de empoderamento da comunidade para não aceitar propostas aventureiras. Construir uma organização com autonomia leva tempo, exige paciência e perseverança. E principalmente: exige a confiança no poder de transformação das novas gerações que compreendem a sua história e realidade. É um exercício de cidadania que devemos desde já praticar, mostrando os diversos cenários futuros a partir do que se pretende decidir. E neste ponto, eu confesso que não faço ideia, sinceramente, se os contratos em curso poderão fortalecer ou enfraquecer a autonomia das comunidades. O que sei, entretanto, é que a opção por uma cogestão de territórios por 30 ou 40 anos com o capital de empresas intermediadoras e multinacionais movimentando milhões de dólares em moedas ou criptomoedas não é justo com quem ainda não tem condições de opinar sobre seu futuro e que pelo palco hoje montado e com os atores que se movimentam, receberão o ônus desta decisão.

Se o mundo em que vivemos e que sofre com as mudanças climáticas ainda está na aurora tímida de uma estrutura não patriarcal, não racista, não colonial, não rentista (10), como é possível permitir que territórios comunitários sejam liderados por mercados de base patriarcal, racista, colonial e rentista? Se vivemos em um sistema hegemônico que se utiliza da natureza para acumular financeiramente ao mesmo tempo em que despeja na mesma Mãe Terra seus dejetos, como acreditar que suas soluções nos servirão?

 

Carlos Augusto Ramos, pantojaramos@gmail.com
Doutorando do Instituto Amazônico de Agriculturas Familiares da Universidade Federal do Pará (INEAF/UFPA), com mestrado em Ciências Florestais.

* Este artigo está baseado na terceira de uma série de cartas do autor sobre o tema dos créditos de carbono na Amazônia.

 

(1) Participantes da audiência pública realizada em Portel, no estado do Pará, Brasil, no dia 24 de janeiro de 2023 e organizada pelo Ministério Público do Estado do Pará trouxeram vários relatos sobre acordo assinado entre um presidente de associação comunitária de Portel e uma empresa de carbono, cujo contrato seria de 40 (quarenta) anos de vigência (MPA, 2023). Ata da audiência disponível aqui. Acesso: 20/04/2023.
(2) Informação técnica Nº 21/2021/COPA/CGGAM/DPDS-FUNAI, segundo LERNER & MIRANDA. Olhar para o céu com os pés fincados na terra: Áreas de uso coletivo e mercado voluntário de carbono na Amazônia brasileira: uma abordagem baseada em direitos. Relatório Técnico. 2023. Disponível em aqui. Acesso: 22/09/2023.
(3)  CLEMENT et al., 2010 citado por FURQUIM, L.; WATLING, J.; SHOCK, M.; NEVES, E. O testemunho da arqueologia sobre a biodiversidade, o manejo florestal e o uso do fogo nos últimos 14.000 anos de história indígena. In: Povos tradicionais e biodiversidade no Brasil [recurso eletrônico]: contribuições dos povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais para a biodiversidade, políticas e ameaças / Manuela Carneiro da Cunha, Sônia Barbosa Magalhães e Cristina Adams, organizadoras; Eduardo G. Neves, coordenador da seção 6. – São Paulo : SBPC, 2021. 85 p.: il. color., mapas col.
(4) Informação disponível aqui.
(5)  Idem nota 2.
(6) FRASER, Nancy. Capitalismo Caníbal. / Nancy Fraser. – 1st ed., Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 2023. Libro Digital, EPUB.
(7) Interessante lembrar que a palavra cláusula deriva do diminutivo em latim CLAUSUS, “fechamento, conclusão”, particípio passado de CLAUDERE, “fechar, encerrar”. Assim, num exemplo espirituoso, uma pessoa que está em uma prisão está enclausurada. Ver aqui.
(8) As margens dos rios no estuário amazônico são ocupadas por milhares de comunidades tradicionais que com frequência constituem formalmente pequenas associações de moradores.
(9) Assim como a cobra Surucucu na “Fábula Amarga” do e-livro “Gosto de Fábulas”, disponível em: www.recantodasletras.com.br/e-livros/6907178
(10) Rentismo é um termo utilizado para descrever práticas ou estruturas econômicas de obtenção de renda que não se baseiam em trabalho ou atividades produtivas, mas na propriedade de ativos como títulos financeiros, terras, recursos naturais, etc.