Um guarda-chuva para o descumprimento: “Compensações pela qualidade do ar” na África do Sul

As compensações pela qualidade do ar na África do Sul fazem parte de uma pressão contra conquistas na regulamentação obtidas através do trabalho árduo de ativistas da justiça ambiental desde a chegada de uma democracia que não se baseia na questão racial, em 1994. Trabalhando há mais de uma década contra um órgão regulador relutante e fraco (o Departamento de Assuntos Ambientais, ou DEA) e empresas fortes (a gigante petroquímica Sasol e a siderúrgica ArcelorMittal), bem como a Eskom, uma empresa paraestatal que tem o monopólio do setor elétrico, os ativistas conseguiram forçar uma revisão da regulamentação da qualidade do ar em 2004, para que estivesse mais em sintonia com o direito ambiental que consta na constituição sul-africana.

Isso incluiu uma nova legislação sobre qualidade do ar e a definição de normas ambientais e de emissão para uma série de poluentes prioritários. Essas mudanças entraram em plena vigência em 2010, entendendo que, em 2015, Sasol, Eskom e outros poluidores eram obrigados a cumprir essas novas normas, que exigiam despesas com tecnologias de redução.

Doze anos após a mudança da legislação, as duas maiores poluidoras do ar da África do Sul – a Eskom e a Sasol – não estavam prontas. Elas implementaram uma estratégia dupla: solicitar isenções em relação às novas normas para a maioria de suas centrais elétricas e forçar o desenvolvimento de uma política oficial de compensação como forma de escapar ao cumprimento das normas.

Em junho de 2015, foram publicadas as diretrizes para a compensação da qualidade do ar (1), muito criticadas por ativistas da sociedade civil. Elas não saíram de um processo “normal” de formulação de políticas, e sim tinham todas as marcas da resposta de um regulador fraco às duas principais poluidoras que estavam ganhando o debate ao manipular as informações sobre a realidade. Ao mesmo tempo, o Departamento divulgou uma defesa global mais ampla (2), que abrangia cinco áreas de aplicação: qualidade do ar, zonas úmidas, biodiversidade, recursos hídricos e compensações de carbono.

Ambos os documentos – as diretrizes de compensação e a defesa da DEA – alegavam que as compensações equilibrariam a proteção da saúde das pessoas e dos ambientes com a necessidade de desenvolvimento econômico. Na prática, devolviam aos poluidores o poder que eles haviam tido, durante o apartheid, para decidir como lidariam não apenas com sua própria poluição, mas também com a dos “outros poluidores”, usando seu “espaço de poluição” – principalmente famílias pobres demais para pagar pela eletricidade e que queimavam carvão de baixa qualidade. Os ativistas ambientais apoiam plenamente medidas que aliviem, quando não eliminarem, a poluição gerada pelas pessoas em casa como resultado da pobreza energética. Em um seminário realizado após o lançamento dessa política, em 2015, comunidades e ativistas concordaram, em termos gerais, em que as compensações da qualidade do ar não funcionariam. As propostas da Eskom e da Sasol foram vistas como uma maneira de transferir a culpa às comunidades. Não há como comparar emissões de fontes industriais e domésticas, e se argumentou que as intervenções para reduzir as emissões domésticas são responsabilidade do governo e não devem depender de compensações. O fato de o governo não ter enfrentado as emissões domésticas de forma significativa é um problema importante, mas, na última década, ele tentou fazê-lo da forma mais barata possível, com o programa Basa Njengo Magogo. O programa ensina as pessoas a colocar o material usado para acender o fogo em cima do carvão, e não embaixo. O governo e as corporações afirmam que isso reduz as emissões de partículas, mas esse método não reduz o enxofre ou os compostos orgânicos voláteis resultantes da queima de carvão, e as toxinas metálicas ainda estão presentes no ar, incluindo mercúrio, chumbo, cromo, magnésio e arsênio. O programa é totalmente inadequado como resposta à poluição causada pela pobreza energética. (3)

Como funciona

As atuais compensações da qualidade do ar na África do Sul se baseiam na ideia de que a poluição do ar gerada dentro de casa tem efeitos muito maiores do que a poluição ambiental regional resultante das estações de energia a carvão e da indústria. Os ativistas da qualidade do ar nunca aceitaram esse argumento como ciência porque:

  • as emissões domésticas em nível do solo são mínimas diante das emissões industriais;
  • a recirculação e a deposição da poluição industrial regional não são levadas em consideração;
  • 50% da poluição PM10 (particulada) vêm do deslocamento de poeira das minas de carvão (a maior parte, através de transferência/transportes);
  • a poluição persistente em nível de solo (com altas porcentagens de compostos orgânicos voláteis) resultante da combustão espontânea do carvão não foi quantificada nem incluída nos cálculos;
  • foram realizados poucos estudos detalhados sobre a poluição doméstica gerada nas casas, e os resultados não são conclusivos.

 

No entanto, em março de 2015, o Departamento de Assuntos Ambientais (DEA) permitiu à Sasol “adiar” o cumprimento das normas mínimas de emissão em troca de um programa de compensação. No caso da Sasol, o programa consiste em um pacote misto: implantar medidas para lidar com incêndios nas estepes, testar as emissões de veículos pesados ​​que entram nas instalações da empresa, reduzir o pó de estradas não pavimentadas (cujo objetivo, suspeitam os ativistas, é criar um novo mercado para um produto químico da Sasol que seria mais barato – e mais nocivo – do que as estradas asfaltadas), intervir na reciclagem e na coleta municipal de lixo doméstico, bem como em reformas baratas para casas, incluindo isolamento com poliestireno potencialmente inflamável.

A resposta da organização ativista sul-africana GroundWork ao plano de implementação de compensações da Sasol foi de que (4) “essa é a opção barata para o cumprimento das normas. Ela funciona como uma indulgência medieval: a Sasol pode continuar pecando, com lucro considerável, desde que pague o custo muito menor de uma penitência”.

A resposta argumentava: “As normas mínimas de emissão permitem que as comunidades responsabilizem as empresas ​​por poluí-las. A compensação absolve a empresa de suas responsabilidades, ao mesmo tempo em que terceiriza a responsabilidade do governo por promover assentamentos humanos saudáveis que disponham de energia limpa. Assim, os interesses da comunidade estão em jogo em ambos os lados dessa transação, mas ela se dá entre a Sasol e o governo. Na medida em que foram consultadas, as comunidades criticaram as compensações como um todo e a transação atual em particular. Parece, no entanto, que o assunto já estava decidido e as opiniões da comunidade já haviam sido excluídas”.

Ao discutir essas propostas, inclusive nas reuniões convocadas pela Sasol, membros de organizações comunitárias reiteraram vários pontos:

1. Esses projetos não podem substituir o cumprimento de normas mínimas para emissões. A Sasol deve fornecer um roteiro para o cumprimento dos passos que dará e quando.

2. A implementação de planos de gestão da qualidade do ar (AQMPs, na sigla em inglês) deve ser uma prioridade, demonstrando o compromisso do governo e das empresas com a redução das emissões industriais dentro de prazos estabelecidos.

3. Os estudos sobre contribuição de fontes à poluição foram tornados obrigatórios dentro do processo dos AQMPs e devem ser financiados pela Sasol e por outras empresas, segundo o princípio do poluidor-pagador.

4. Uma linha de base a partir de uma medição inicial para se determinar a distribuição da poluição é necessária, mas não adequada. Também deve haver uma linha de base para a saúde das pessoas, para que os atuais impactos da poluição sobre a saúde sejam compreendidos. Esse estudo deve criar a base para monitorar a saúde das pessoas através da coleta sistemática de estatísticas em hospitais, clínicas e médicos. Os estudos de linha de base e monitoramento de saúde devem se dar dentro dos AQMPs, pois qualquer processo gerenciado pela Sasol ou por outras empresas poluidoras não terá credibilidade.

5. Independentemente do que a Sasol faça com seus projetos de compensação, esperamos que o governo se responsabilize pela energia e pelas emissões domésticas. Até o momento, o governo não fez nada além do programa Basa Magogo, que sempre foi uma maneira barata de evitar uma resposta real, e provou ser totalmente ineficaz.

6. Do mesmo modo, o governo precisa fornecer profissionais e instalações adequadas para enfrentar a crise de saúde criada pela poluição das regiões do Vaal e do Highveld. Isso deve incluir clínicas quer funcionem 24 horas por dia e sejam capazes de responder a emergências de poluição à noite, bem como pessoal especializado para lidar com doenças respiratórias. O sistema deve ser desenvolvido para permitir um acesso melhor à saúde pública. Nesse sentido, os moradores locais não confiam nos profissionais de saúde das empresas para um diagnóstico adequado em casos em que as atividades da empresa sejam a causa provável da doença.

A quem as compensações beneficiam?

Em geral, as compensações beneficiam à indústria de muitas maneiras. Elas são uma ameaça à construção de um regime regulatório razoável e prejudicam a democracia.

As principais preocupações dos ativistas sul-africanos com relação às compensações são:

  • As compensações sempre responsabilizam as comunidades locais pela poluição ou pela destruição da biodiversidade. Na maioria das vezes, as atividades das indústrias não são apontadas como raízes do problema.
  • O uso de compensações inverte a hierarquia da mitigação. Essa hierarquia, que faz parte das políticas sul-africanas, prescreve que todas as outras opções, como evitar ou minimizar os danos, devem ser tentadas antes de se considerarem as compensações. No entanto, a indústria sempre preferirá compensações a medidas de mitigação, pois as primeiras são mais baratas. Portanto, haverá pressão para reduzir os custos da compensação.
  • As compensações são usadas para justificar o injustificável: projetos que deveriam ser rejeitados são permitidos com base em propostas de compensação; práticas ilegais (por exemplo, ir além de níveis mínimos de emissão) são permitidas com base em compensações.
  • A capacidade regulatória é inadequada para a tarefa e não prevê supervisão. A suposição de que os mecanismos de compensação contrabalançam a baixa capacidade de regulamentação e planejamento é falsa. Pelo contrário, eles a exacerbam.
  • As compensações vão pressionar o governo a abandonar as responsabilidades em vez de gerar capacidade para cumpri-las, enquanto enfraquece a regulamentação, atendendo ao lobby
  • A destruição causada pelo projeto original é certa, enquanto os benefícios da compensação não o são – na verdade, a maioria das compensações pode ser destrutiva.
  • As compensações atraem a mercantilização e a financeirização da natureza.
  • Se houver dinheiro real envolvido (como esperam os proponentes), o grande capital vai entrar no negócio. Os implementadores da compensação não ficarão restritos a operadores pequenos e éticos, e a situação será impulsionada pelo lucro.
  • O uso de compensações depende de uma série de cálculos e equivalências falsos que simplificam sistemas ecológicos complexos e únicos – entre o que é destruído e o que é preservado e entre “valores” ecológicos e monetários – por exemplo, quantos camaleões valem um falcão e qual é o preço.
  • A compensação irá mascarar o fato de que habitats e espécies perdidos são insubstituíveis.
  • As compensações representam uma dupla concentração de terras: as pessoas podem ser removidas uma vez para a implantação do projeto original (por exemplo, abrir espaço para uma mina) e outra vez para a própria compensação. Isso pode acontecer porque elas perdem empregos com a mudança no uso da terra (já observada na transformação de fazendas agrícolas em propriedades usadas para criar animais de caça, principalmente antílopes, para revenda e caça, com o despejo dos trabalhadores agrícolas) ou porque pessoas que usavam a terra e os recursos naturais na área de compensação ficam proibidas de fazê-lo (como é provável nas antigas áreas dos chamados Bantustões, reservadas para a população negra).
  • Dentro de bacias hidrográficas ou atmosféricas específicas, as compensações podem ser anuladas e superadas pelo acúmulo de atividades destrutivas – por exemplo, a drenagem de minas ácidas destrói zonas úmidas preservadas como compensações a projetos de mineração; as compensações de qualidade do ar ficam muito aquém da escala e da disseminação geográfica da poluição industrial (por exemplo, as compensações propostas por Eskom e Sasol).

 

Victor Munnik, victor [at] victormunnik.co.za

David Hallowes, hallowes [at] telkomsa.net

Groundwork, África do Sul, http://www.groundwork.org.za/

(1) Government Gazette (Diário Oficial), junho de 2015

(2) Departamento de Meio Ambiente, Documento de Discussão sobre Compensações Ambientais, junho de 2015

(3) Rico Euripidou, 2014. Slow Poison: Air pollution, public health and failing governance. A story of air pollution and political failure to protect South Africans from pollution. Hallowes, D. (organizador), GroundWork, junho de 2014, http://www.groundwork.org.za/specialreports/Slow%20Poison%20(2014)%20groundWork.pdf

(4) Resposta da GroundWork ao plano de implementação de compensações da Sasol, 29 de janeiro de 2016.