Carvão sangrento por carbono sangrento na Colômbia

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cerrejon colombia
El Cerrejon, mina de carvão em La Guajira, Colômbia. Janeiro de 2017. Foto: Wikimedia

Este artigo faz parte da publicação "15 anos de REDD:

Um esquema corrompido em sua essência"

 

Os países do Sul global foram “incentivados” a construir seus próprios sistemas de precificação de carbono, o que muitas vezes significou a aprovação de leis e regulamentações que afetam os territórios das comunidades. Este artigo descreve o sistema de precificação de carbono na Colômbia e revela como as mineradoras têm usado o REDD+ para evitar legalmente o pagamento de impostos enquanto alegam “neutralidade de carbono”. A Glencore, uma grande mineradora multinacional que causou poluição, violência e expulsões na Colômbia, recebeu isenção fiscal relacionada ao carbono em função de seu investimento em um programa de compensação que gera apropriação de terras.

Este artigo descreve a forma como violentas corporações produtoras de “carvão sangrento” na Colômbia recebem reduções de impostos por investirem em um programa de compensação de carbono, que gera concentração de terras do outro lado do país, impactando comunidades afrocolombianas e povos indígenas em ambos os lados.

Situadas no nordeste da Colômbia, as maiores minas de carvão a céu aberto do hemisfério ocidental abrangem as regiões de Cesar e La Guajira. Nelas, a extração violenta vem acontecendo há décadas, desde sua instalação, na década de 1980, pela famigerada corporação norte-americana Exxon: o produto é conhecido na região como “carvão sangrento” em função da violência histórica e continuada, associada às grandes mineradoras. Grupos e comunidades que resistem à sua extração enfrentam a violência extrema das forças militares e paramilitares, ameaças de morte, criminalização e intimidação. Historicamente, a maior parte dos 98% do carvão que são exportados foi para a Europa (PAX).

Somando-se à violência nos locais de extração e combustão, as próprias políticas de mitigação das mudanças climáticas criam brechas financeiras e subsídios para as indústrias extrativas. É a precificação do carbono, que permite o uso de compensações em vez de tratar de reduzir a extração de combustíveis fósseis na fonte. As compensações de carbono permitem que as indústrias extrativas continuem poluindo. Durante anos, vimos esse sistema falho equiparando as emissões decorrentes da superprodução de energia a partir de combustíveis fósseis a programas de conservação baseados na terra. A extração de energia de combustíveis fósseis não deve ser confundida nem misturada com a arena muito complexa e historicamente racista do conservacionismo. Nos últimos cinco anos, os sistemas de precificação de carbono proliferaram no Sul global.

Com base em quinze meses de pesquisas na Colômbia, este artigo descreve o sistema de precificação de carbono no país e demonstra como a Glencore, uma grande mineradora multinacional, tem direito a pagar menos impostos se comprar créditos de carbono de projetos de REDD+ enquanto alega “neutralidade de carbono”. Este artigo trata da subsidiária da Glencore, a Prodeco, que atua na região de Cesar, no nordeste do país. No entanto, é importante observar que, no início de 2021, a Glencore passou a ser a única proprietária da mineradora Cerrejón e opera a imensa mina na vizinha região de La Guajira, afetando gravemente as comunidades indígenas Wayúu.

Precificação de carbono

Na Cúpula de Liderança Climática do Secretário-Geral da ONU, em setembro de 2014, devido aos baixos preços dos créditos de carbono naquele momento, 74 países, 23 estados, províncias e cidades, e mais de 1.000 empresas e investidores com mais de 24 trilhões dólares em ativos se reuniram para discutir uma série de novas iniciativas para “precificar o carbono”. Essa mudança ocorreu apesar das evidências contundentes de que os mercados de carbono não estavam conseguindo reduzir as emissões.

O novo plano de precificação do carbono visava articular sistemas de comércio de emissões, impostos sobre o carbono, REDD+ e outros programas de precificação. Ao mesmo tempo, o objetivo era vincular os preços em escala global, aumentando a “flexibilidade” dos mercados financeiros para as maiores indústrias poluentes e os governos dos países industrializados mais poderosos do mundo.

Os países do Sul global foram incentivados a construir seus próprios sistemas nacionais de precificação de carbono, no sentido de se preparar para um sistema global de precificação. Isso foi aprofundado por meio dos planos estabelecidos no Artigo 6 do Acordo de Paris. Em 2015, ano em que o Acordo foi adotado na reunião climática da ONU, em Paris, a Colômbia se comprometeu a reduzir as suas emissões em 20% até 2030. Para isso, assumiu compromissos de ampliar áreas protegidas, reduzir o desmatamento, proteger os páramos (zonas húmidas específicas), aumentar a conservação das bacias hidrográficas e construir um programa para mitigação das alterações climáticas, além de marcos de adaptação. Desde 2015, uma série de leis sobre precificação de carbono também entrou em vigor na Colômbia.

A primeira foi a Lei 1753 (2015), cujo Artigo 175 criou um Inventário de Emissões de Gases de Efeito Estufa. A lei inclui o REDD+, a ser regulamentado pelo Ministério do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável. Em 2016, o governo aprovou uma reforma tributária abrangente, que incluía um imposto sobre o carbono (Lei 1819). A lei aplicava um imposto sobre o CO2, relacionado à combustão de gasolina, querosene, combustível de aviação, diesel e óleos combustíveis, mas curiosamente, não ao carvão. O gás natural também é tributado, mas só para uso na indústria de refino de hidrocarbonetos e petroquímicos, e gás liquefeito de petróleo (GLP), e apenas para venda a usuários industriais. As emissões decorrentes desses combustíveis representam cerca de 27% das emissões totais do país. O imposto foi estabelecido inicialmente em 15 mil pesos (5,5 dólares) por tonelada de dióxido de carbono equivalente (tCO2e) e aumentará a cada ano, até atingir cerca de 11 dólares por tCO2e.

Em 2017, o Decreto 926 incluiu uma disposição sobre “neutralidade de carbono”, permitindo comprar compensações em vez de pagar o imposto sobre o carbono, por meio de verificadores terceirizados. Não é incomum que haja emendas ou decretos relacionados a compensações depois de se estabelecer um imposto inicial sobre o carbono, como aconteceu no México. Vários projetos dão direito a vender créditos de compensação de carbono na Colômbia, incluindo projetos de REDD+. Chamando-os de projetos de REDD+ “aninhados” (ou, às vezes, de REDD+ jurisdicional, ou seja, vários projetos são combinados na mesma área geográfica), o governo colombiano permitiu que mais de 75 deles fossem registrados em maio de 2021, e os números estão aumentando rapidamente.

Os projetos de REDD+ têm sido muito criticados por suas consequências para os modos de vida e territórios dos povos indígenas, elevando os preços da terra, aumentando a violência e gerando divisões nas comunidades. Organizações de povos indígenas e comunidades que vivem na floresta argumentaram que o REDD+ é um mecanismo colonial, que permite que as empresas assumam o controle das florestas ao atribuir preço à natureza. Além disso, os índices de desmatamento não pararam de crescer com o REDD+.

A Colômbia foi aclamada como líder da precificação de carbono (IETA 2018). Em 2017, como membro da Aliança do Pacífico (Chile, México, Colômbia e Peru), o país assinou a Declaração de Cali para reafirmar o Acordo de Paris e intensificar a verificação nos mercados voluntários da região. Naquele mesmo ano, a Colômbia entrou para a Coalizão de Liderança em Precificação de Carbono do Banco Mundial (CPLC) para conectar países desenvolvidos e em desenvolvimento aos mercados de precificação de carbono. A Colômbia também participou do One Planet Summit, em Paris, com Canadá, Chile, México, Costa Rica e sete estados dos Estados Unidos e do Canadá, para lançar o marco de cooperação para a Precificação de Carbono nas Américas e construir uma plataforma de comércio com o objetivo de conectar os mercados de carbono em todo o hemisfério.

Se cumprirem as disposições sobre compensação, as grandes empresas podem alegar ser “neutras em carbono” e evitar a tributação total. Essas compensações devem ter sido geradas depois de 1º de janeiro de 2010 e implementadas dentro da Colômbia. O programa colombiano de impostos sobre o carbono incentivou o desenvolvimento de mais projetos de REDD+.

Originalmente, a receita tributária deveria ir para o Fundo Colômbia Sustentável (FCS), uma iniciativa do governo colombiano, financiada por Noruega, Suécia e Suíça, que implementa programas de conservação, inclusive de REDD+, em 277 municípios de todo o país. O fundo é administrado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), com base em uma Declaração Conjunta de Intenções (DCI) assinada por Colômbia, Noruega, Reino Unido e Alemanha nas negociações climáticas da ONU de 2015, em Paris. O Fundo foi renovado em 2019, durante as negociações climáticas em Madrid, na Espanha.

A Lei sobre Mudanças Climáticas da Colômbia, de 2018, integra o programa do país para a precificação de carbono. Entre outras coisas, ela inclui o Programa Nacional de Cotas Comercializáveis ​​de Emissão de Gases de Efeito Estufa (PNCTE), operado pelo governo. A lei permite que uma unidade de carbono seja reconhecida e paga no esquema de compensação de impostos, conectando comércio, impostos e sistemas de compensação de carbono.

A Colômbia está examinando formas de vincular seus programas aos mercados internacionais, mas é importante lembrar que cada negociação de carbono representa poluição e violência reais nas comunidades próximas às áreas de poluição e extração.

Comunidades afrocolombianas impactadas pela mineração de carvão e o REDD+ na Colômbia

Os projetos de REDD+ Cocomasure e BioREDD+ estão localizados na costa do Pacífico, onde os afrocolombianos têm direitos fundiários a mais de 5 milhões dos 10 milhões de hectares de floresta tropical. A subsidiária colombiana de mineração de carvão da Glencore, Prodeco, e a petrolífera Chevron estavam entre as primeiras compradoras de REDD+ em toda a Colômbia.

O Diretor de Meio Ambiente da Glencore/Prodeco explicou que a empresa esteve envolvida nas negociações de políticas para formular a legislação relativa ao imposto sobre o carbono, mas essas negociações também foram informadas por ONGs conservacionistas: “O imposto sobre o carbono teve início aqui, em 2016, e começou a ser implementado em 2017 (...) Ele surgiu de nós .... nós participamos de tudo o que dizia respeito ao surgimento e à discussão dessa legislação. Discutimos e contribuímos para o nascimento de toda essa legislação, mas era um tema relativamente novo para a indústria de mineração na Colômbia. Demorou um pouco para entendermos, o que acabou acontecendo por meio de aliados como a Conservation International, porque já temos vários projetos com eles” (comunicação pessoal, 2019, itálico nosso).

O projeto Cocomasure teve início em 2011, no Corredor Choco-Darien, no Urabá Antioqueño, e gerou 40 mil créditos de carbono em cerca de 14 mil hectares onde vivem 20 comunidades. Os créditos de carbono foram adquiridos pela subsidiária colombiana da Glencore, a Prodeco, para compensar as emissões geradas a partir do diesel durante suas operações. Esse projeto inicial foi emblemático porque estabeleceu um precedente para que outros projetos de REDD+ fossem implantados e, posteriormente, vinculados ao sistema de impostos sobre o carbono da Colômbia.

Do outro lado do país, as minas de carvão da Glencore/Prodeco estão localizadas no nordeste do Caribe colombiano e também impactam as comunidades afro-colombianas. As comunidades próximas às minas de carvão em Cesar sofrem com escassez de água, níveis perigosos de poluição, anos de violência e despejos, concentração de terras e discriminação (Gilbertson, 2020). A Prodeco optou pela pré-compra de créditos de REDD+ em vez de pagar o imposto sobre o carbono.
O programa BioREDD+ foi elaborado pela agência de desenvolvimento dos Estados Unidos (USAID) em 2013, e replicou o projeto Cocomasure REDD+ em outras oito comunidades.

A Fondo Acción é a operadora de contrato do projeto BioREDD+ para a USAID. A Prodeco e a Conservation International (CI) trabalham juntas em vários projetos relacionados a Pagamentos por Serviços Ambientais, e foi a CI que incentivou a Prodeco a entrar em contato com a USAID. A Prodeco assinou contrato com a Fondo Acción para compra dos créditos. A Fondo Acción está envolvida com compensação e financiamento de conservação há muitos anos, e foi a ONG executora da troca de dívida por natureza com os Estados Unidos em 2004. O diretor da Prodeco explicou que a Fondo Acción atuou como facilitadora entre a Prodeco e as comunidades (comunicação pessoal, 2019). Ele também explicou que a Fondo Acción sabe como falar “com o setor privado em sua língua, sobre contratos e questões financeiras” (comunicação pessoal, 2019). Ele continuou:

“Eles [Conservation International] fizeram contato com a USAID e com a Fondo Acción, que trabalhava no projeto de REDD no Pacífico há mais de cinco anos, antes mesmo da geração de impostos sobre o carbono na Colômbia. Existe um projeto da USAID que é muito, muito grande, chamado BioREDD, que foi basicamente o impulso que gerou a estruturação do projeto de REDD no Pacífico, replicando o modelo do Projeto de REDD, que foi pioneiro no país” (comunicação pessoal, 2019).

Apesar da confiança do diretor, ao ser abordadas pela Fondo Acción para que vendessem créditos de REDD+ à Prodeco, as comunidades recusaram. Elas resistiram e disseram que não se envolveriam com uma empresa de carvão. No entanto, de acordo com o representante da Prodeco, foi a Fondo Acción que argumentou em nome da empresa:

“Porque, na verdade, eles [a assembleia ou consejo da comunidade] disseram: “Não, é uma mineradora que vai comprar, uma empresa de mineração”. Mas a Fondo Acción disse: “Eles não são uma mineradora qualquer, são uma empresa responsável, blá, blá, blá. E saímos de lá com o compromisso e fechamos o acordo, mas ainda assim tem que explicar [para eles] quem é a Prodeco e saber mais sobre eles [a comunidade]. Esse é o processo em que estamos” (comunicação pessoal, 2019).

A Prodeco pagaria cerca de um quarto a um terço do valor do imposto sobre o carbono, o que representa uma significativa economia financeira para a empresa. Além disso, a Prodeco obteria não apenas benefícios fiscais, mas também propaganda positiva em relação ao clima, por ser classificada como “neutra em carbono”.

Hoje, os mais de 75 projetos de REDD+ “aninhados” são usados ​​essencialmente como subsídio/compensação relacionados aos combustíveis fósseis, por meio do programa do imposto sobre o carbono da Colômbia. Vários desses programas operam na Amazônia, envolvendo pelo menos mais de 17 comunidades indígenas.

Enquanto discutem como obter a contabilidade de carbono correta, a ONU, intermediários de negociações de carbono e instituições de desenvolvimento e conservação perdem de vista a verdadeira questão. Não há cálculo de carbono que conserte esse sistema falho. Definir linhas de base, aumentar a capacidade e enfrentar o risco de liberações prematuras de carbono nunca manterá os combustíveis fósseis no solo. Esses combustíveis devem ser eliminados gradualmente e mantidos no solo, e a violência racista e socioeconômica que acontece nas áreas de extração, combustão e transporte tem que parar imediatamente.

Nenhum sistema de precificação do carbono sangrento pode manter no solo o carvão sangrento nem qualquer outro combustível fóssil.

Tamra L Gilbertson

Com formação em nível de doutorado, é Conselheira para Mudanças Climáticas e Políticas Florestais da Rede Ambiental Indígena, e palestrante no Departamento de Sociologia da Universidade do Tennessee. Este artigo é baseado na pesquisa feita para sua tese e em um artigo posterior, publicado no Community Development Journal.

Agosto de 2021