Panamá: A comunidade de Caisán, mobilizada por ‘rios livres’ e energia comunitária

Imagem
Community of Caisán (Photo: Jonathan Gonzalez)
Comunidade de Caisán (Foto: Jonathan Gonzalez)

Nas últimas duas décadas, vimos muitos povoados no oeste do Panamá perderem suas terras como resultado de um projeto de grande porte, chamado Plano Puebla Panamá (PPP). A nossa comunidade de Caisán, na província de Chiriquí, foi a primeira do país a enfrentar o modelo de expropriação e acumulação disfarçado de energia supostamente ‘limpa’ e ‘renovável’, promovido pelo PPP.

O PPP, agora conhecido como Projeto Mesoamérica, foi lançado em 2001 pelo governo mexicano. Seu objetivo era integrar toda a região mesoamericana, conectando o sul do México ao Panamá por meio de sistemas rodoviários, interconexão elétrica e telecomunicações. O enfoque principal era o desenvolvimento dos recursos energéticos da região: petróleo, gás e eletricidade. Em outras palavras, criar infraestrutura para o transporte e a conexão de matérias-primas, recursos energéticos, mão de obra barata e sistemas de comunicação, de acordo com os interesses das grandes empresas e dos mercados dos Estados Unidos.

Para tanto, em 2006, o PPP iniciou a construção de um de seus principais projetos: o Sistema de Interconexão Elétrica dos Países da América Central (SIEPAC). A necessidade de gerar energia para alimentar esse sistema impulsionou a construção de usinas hidrelétricas. Assim, vimos como algumas das quase 85 hidrelétricas projetadas para ser construídas no Panamá saíram do papel e começaram a se materializar. (1) Houve muitos impactos sobre as nossas comunidades como resultado desse ‘desenvolvimento’, que se apresentava como ‘sustentável’. 

Caisán está localizada na província de Chiriquí, onde se encontra o Rio Chiriquí Viejo, cuja bacia hidrográfica é uma das principais do Panamá e essencial para os projetos hidrelétricos do país. Naquele momento, a política energética panamenha era implementada com base em uma lógica mercantilista. A privatização do sistema elétrico fez com que a água fosse tratada como uma mercadoria e não como um direito social.

De suas escrivaninhas, os governos formalizaram contratos permanentes de água para que empresas hidrelétricas nacionais e transnacionais tivessem o direito de acessar quase toda a capacidade hídrica de nossos rios. Essas empresas tinham respaldo jurídico para usar e desviar até 90% da vazão dos rios.

Cada uma das empresas afirmou que seu projeto hidrelétrico específico não teria impactos negativos importantes. No entanto, nem governos, nem entidades financeiras ou empresas levavam em consideração o grave dano cumulativo causados ​​pelas atividades de todas elas, juntas, às nossas comunidades e aos ecossistemas da bacia hidrográfica do Chiriquí Viejo. 

Enquanto isso, para justificar a construção de muitos projetos hidrelétricos em um único rio e na maioria das principais bacias hidrográficas da província de Chiriquí, os governantes empregavam termos enganosos, como projetos de ‘energia limpa’, ‘minibarragens’ ou ‘barragens a fio d’água’.

Nesse contexto, as nossas comunidades resistiram, manifestaram-se, deram visibilidade e anteviram os problemas que surgiriam com a implantação dos projetos hidrelétricos. E nós, da comunidade de Caisán, estivemos na vanguarda desse processo de resistência.

Imagem
Mapa dos projetos hidrelétricos nos rios de Chiriquí. Fonte: Gutiérrez, A., González, J. (2023)
Mapa dos projetos hidrelétricos nos rios de Chiriquí. Fonte: Gutiérrez, A., González, J. (2023)

Os impactos das hidrelétricas

Nós, de Caisán, nunca tínhamos visto uma usina hidrelétrica. Na verdade, quando começaram as primeiras reuniões para organizar a comunidade contra esses projetos, embora não imaginássemos como seria uma usina dessas, já tínhamos informações suficientes sobre seus impactos prejudiciais. Então, em 2007, passamos a fazer campanhas nas comunidades onde os primeiros projetos estavam começando.

Os governos argumentavam que a matriz energética panamenha estava em processo de transição para uma matriz renovável, na qual a energia seria limpa. Mas, aqui na comunidade, discutimos o assunto e não concordamos em chamá-la de ‘energia limpa’. Isso porque as empresas que chegaram para usar a força do rio na produção de energia elétrica nos tiraram a água – levaram e não devolveram. Essas empresas transformam o território porque, ao represar a água, elas a levam embora e deixam os rios secos. Somado a isso, os reservatórios estão estáticos, cheios de algas, até mesmo com lixo acumulado. Caem árvores nos rios, que são arrastadas para os reservatórios, e há grandes quantidades de sedimentos. Portanto, não parece algo limpo.

Além disso, quando as primeiras hidrelétricas foram inauguradas na região de Caisán, vimos como o entorno da usina se tornou propriedade privada. Áreas que antes eram livres, onde costumávamos nadar, pescar ou que usávamos para transitar para o outro território, agora tinham um portão com uma placa: “Propriedade privada, entrada proibida”. E contratavam segurança privada.

Também nos disseram que haveria trabalho e que melhorariam as condições da comunidade. Mas o que observamos foi que muitas pessoas que começaram a trabalhar lá adoeceram e já não foram contratadas por muito tempo. Somado a isso, muitas pessoas que vieram de outros lugares para construir a hidrelétrica trouxeram vícios, e Caisán começou a conviver, pela primeira vez, com prostíbulos e muitos problemas com álcool.

Como prevíamos, algumas propriedades ficaram com rios e lagos secos, porque as hidrelétricas desviaram a água subterrânea que passava por elas, além de represá-la.

Tínhamos peixes, que nadavam do mar e subiam pelo rio, em direção à montanha. Esses peixes se reproduzem em um lugar e vivem em outro, e usam o rio para se deslocar. Mas eles já não conseguiam fazer isso porque havia muitas hidrelétricas no mesmo rio.

Sem mencionar o fato de que, com tudo isso, atualmente a maior parte da comunidade de Caisán nem sequer tem acesso à eletricidade gerada por essas usinas hidrelétricas.

A organização comunitária

Diante dessa situação, naquele mesmo ano de 2007, começamos algumas ações em Caisán para interromper esses projetos. A primeira foi solicitar diplomaticamente à prefeitura e ao governo provincial que o rio se tornasse patrimônio municipal da região. Além disso, também mobilizamos um grande número de pessoas para protestar em espaços governamentais e pressionar para que atendessem as nossas reinvindicações. Como não recebemos uma resposta positiva, nem do governo nem da Prefeitura, iniciamos ações mais contundentes: organizamos o fechamento de estradas para tentar impedir a construção de usinas hidrelétricas.

Essa luta continuou por muitos anos. Há um vídeo emblemático desse período, gravado por uma organização local formada por pessoas afetadas e que lutam contra esses projetos extrativistas, a Fundação para o Desenvolvimento Integral do Subdistrito de Cerro Punta (Fundiccep). É um registro histórico da luta contra as hidrelétricas no Panamá e capturou as vozes dos companheiros que lutaram e defenderam seus territórios. Esses companheiros dizem:
“Cinco anos de luta, cinco anos denunciando riscos e ameaças, cinco anos exigindo atenção à destruição dos rios. Não há autoridade, nem deputado, nem governante que escute, ‘a pirotecnia’ dos grandes benefícios econômicos desses projetos têm sido mais forte que o clamor de um povo que pede justiça e equidade. (...) E mesmo que vejamos um pouco de água correndo nos rios, ela já não estará mais disponível, já não será ‘nossa’, pertencerá a outros, a um empresário que mora longe, que não entende e nunca entenderá por que o rio faz parte da nossa vida”.

Por fim, as hidrelétricas não geraram desenvolvimento para as comunidades, nem nos aproximaram da energia, nem reduziram os preços dos serviços elétricos, nem trouxeram melhores condições de vida para as nossas comunidades. 

No entanto, depois de tantos anos, agora sentimos que toda essa luta não foi em vão, porque conseguimos que as empresas não tivessem tanta facilidade de obter financiamento para seus projetos. Com essa mobilização, conseguimos interromper a implementação de muitos dos projetos hidrelétricos planejados para a região de Chiriquí (dos cerca de 23 previstos, apenas 8 foram concluídos). Além disso, o Rio Caisán continuou livre porque não conseguiram licenças para fazer nada ali; havia muita resistência.

Nós, que estivemos aqui sofrendo as consequências desses projetos energéticos, não os vemos como uma alternativa, pois consideramos essa transição energética tão suja quanto a energia fóssil.

Em qualquer comunidade atualmente afetada pela transição energética – e essa transição implica a exploração dos recursos naturais, a exploração da Mãe Terra –, é claro que é preciso buscar uma alternativa que se oponha a esse modelo capitalista, que desequilibra e expropria o nosso modo de vida.


Por uma energia feita por e para o povo

Na minha comunidade, somos agricultores e ouvimos falar muito sobre biogás. Muitas pessoas que saíram da comunidade falaram sobre como era possível usar excremento de porco produzir gás. Agora, instalamos vários biodigestores na comunidade com o apoio da Fundiccep. Os membros dessa organização agem e lutam denunciando os grandes projetos devastadores, mas também propondo esforços e promovendo novas formas de energia. Para isso, eles prestam assessoria técnica às comunidades.

Em um primeiro momento, os biodigestores foram concebidos como solução ambiental para a poluição das águas causada pela pecuária comunitária e como forma de reduzir o uso de botijões de gás que precisam ser comprados. Mas depois, fizemos testes para usá-los também na geração de eletricidade. Conectamos a um gerador e funcionou muito bem. Em outras palavras, poderíamos dar esse salto para a produção de eletricidade.

Fizemos isso em uma escala pequena, mas se nós, como comunidade, chegássemos a um acordo e tivéssemos cerca de 20 porcos, e usássemos todo o esterco deles para produzir eletricidade, seria possível gerar energia suficiente para o que a comunidade considera necessário. E é uma construção que pode ser feita coletivamente.

Quando temos um biodigestor e vemos todo o seu processo de funcionamento — como é por dentro desse grande recipiente de plástico, o gás metano transformando a matéria interna e toda a geração de energia em calor – aplicamos, na prática, o tema da energia. E, ao explicar esse processo de forma comunitária, refletimos sobre como vemos a energia.

Obviamente, abre-se todo um universo quando sabemos que a natureza nos oferece múltiplas alternativas energéticas. Estamos sempre ouvindo no rádio, na televisão ou na escola que “o sol, o ar e o movimento dos mares geram energia”. Mas é diferente quando podemos ver com nossos próprios olhos que o esterco que antes poderia ser um problema, agora pode ser uma alternativa ou uma fonte de outro tipo de energia. Então, observamos tudo isso com grande admiração, pensando: isso sim é realmente engenhoso e a comunidade pode se apropriar dessa engenhosidade ou ser parte dela.

Acreditávamos que a produção de energia era uma equação muito sofisticada, só possível para grandes máquinas, grandes empresas ou grandes capitais. E saber que, em pequena escala, poderíamos transformar esterco em gás ou transformar esse gás em eletricidade para mover um motor, por exemplo, realmente muda a maneira como vemos as coisas.

Como comunidade, apostamos em produzir eletricidade limpa com o que temos. Essas discussões já existem em todo o mundo, outras comunidades já fizeram isso, e existem soluções de baixíssimo custo. É necessária uma alta participação da comunidade para encontrar soluções, com isso, o resto se torna possível. 
Para qualquer povo ou território do mundo que esteja tentando agir para aproveitar a energia que tem em seu entorno ou qualquer tipo de energia disponível, e que a veja como uma alternativa, é importante sonhar, e sonhar grande. Porque o capitalismo nos vendeu a ideia de que tudo tem preço e tudo é mercadoria, e isso não é verdade.


Jonathan Gonzalez, ativista e campesino de Caisán


Referências

(1) Otros mundos Chiapas, Del PPP al Proyecto Mesoamérica.  


Para mais informações:

FUNDICCEP (2015): Plan de Conservación de la subcuenca del Río Caisán.

- Gutiérrez, A., González, J. (2023): Conflictos socioambientales por represas y proyectos hidroeléctricos en Chiriquí, Panamá y la Zona Sur de Costa Rica. Anuario del Centro de Investigación y Estudios Políticos. San José, Costa Rica.

- Lambert, C., Scheer, A. (2017):  Socio-Environmental Conflicts Caused by Hydroelectric Projects on the Río Chiriquí Viejo. McGill University  

- Light, T. (2016): Características químicas y físicas de los ríos por encima y por debajo de cuatro centrales hidroeléctricas en las cuencas hidrográficas de Chiriquí Viejo y Chico, Chiriquí, Panamá”. Colección del Proyecto de Estudio Independiente (ISP). 2393.

- Sawyer, N. (2017): “Factores que determinan la acción civil en oposición al desarrollo hidroeléctrico a lo largo del río Chiriquí Viejo en la provincia de Chiriquí, Panamá”. Colección del Proyecto de Estudio Independiente (ISP). 2559.