Patriarcados nas florestas da Índia: comunidades em perigo

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Ilustração: MAKAAM

As interdependências que ocorrem dentro e entre comunidades das florestas com seus espaços e práticas de vida – em vez dos discursos masculinos de conquista e captura, de cercamentos e “divisões” – ajudam a esclarecer suas práticas de conservação. Em essas interdependências estão as histórias das mulheres.

A história dos conflitos de terra nas áreas da Índia com florestas está invariavelmente vinculada à imposição do domínio colonial do Império Britânico sobre essas florestas, como territórios a ser capturados para seus próprios usos comerciais. As políticas atuais da Índia para suas florestas são resultado desses governantes coloniais e de suas prioridades. Na década de 1980, o Departamento de Florestas e Meio Ambiente introduziu várias medidas para descentralizar a governança florestal e superar o legado de governança autocrática. (1) Contudo, as evidências indicam, em grande parte, um controle autoritário e um manejo tecnocientífico e burocrático por parte desse Departamento, com perigo para as comunidades que convivem com suas florestas.

Essas políticas entram em contradição com os legados culturais das comunidades que dependem das florestas, que administram sua vida cotidiana em harmonia com o ritmo do viver ecológico. Após a independência, os Adivasis, como são chamados os habitantes tradicionais das florestas da Índia, foram classificados como “Tribos Reconhecidas” e receberam status especial por meio de uma emenda constitucional. Com controle de fato sobre suas terras e tendo desenvolvido métodos apropriados de cultivo, cuja pegada ecológica é mínima – por exemplo, os sistemas de agricultura itinerante conhecidos como “nevad”, em Madhya Pradesh, “valra” no sul do Rajastão, ou “podu” em Andhra Pradesh – eles “veneraram sua terra e criaram seus filhos em sua abundância”. (2) Aos poucos, as intervenções estatais e a forte presença do Departamento Florestal foram corroendo esses sistemas. Agora, o Estado passa a considerar mais apropriado sancionar essas práticas com base em crimes insignificantes supostamente perpetrados por Adivasis ou moradores da floresta, apesar de eles serem os guardiões dessa floresta.

As experiências das mulheres com as mudanças na propriedade, nas relações e nas práticas das florestas

Minha pesquisa no oeste da Índia, no sul do Rajastão, revela que, há séculos, as mulheres cumprem um papel central na conservação das florestas e dependem delas para suas necessidades de subsistência. Com muita frequência, porém, a narrativa colonial domina a forma como se dá do manejo florestal. Há pouca referência às interdependências entre comunidades para reivindicar espaços e viver em ambientes variados, com as culturas de suas respectivas civilizações. A partir dessa perspectiva baseada em interdependências, e não de uma visão cronológica linear colonial e orientada para o crescimento, (3) pode-se entender as práticas de manejo e conservação das comunidades florestais. Como portadoras de conhecimento, essas comunidades atribuem um sentido sagrado e simbólico aos recursos vitais em seus meios de subsistência e suas práticas de vida. Elas são coletoras e manejadoras de rebanhos, que praticavam a agricultura itinerante enquanto procuravam comida e ervas nas florestas.

E dentro dessas interdependências estão as histórias das mulheres. Suas vidas e seus papéis na conservação e na proteção são visíveis quando elas patrulham as florestas e punem quem descumpre normas de proteção e regeneração coletivamente acordadas, como rotação e cercamento. Os ritmos e a cultura de suas práticas estão embutidos no relacionamento cultivado com essas regiões ao longo de gerações, com as mulheres como porta-bandeiras desse sistema de relações e de conhecimento, em função de suas práticas e seus rituais de vida.

No entanto, esses papéis das mulheres raramente têm reconhecimento formal, mesmo nas estruturas tradicionais de governança, em função das suas estruturas patriarcais de tomada de decisão em todas as regiões centrais da Índia. (4)

Em todo o país, o Departamento Florestal e seus funcionários continuam reivindicando amplamente as florestas como seu território e impondo sua autoridade por meio da Lei de Conservação Florestal e de legislações complementares, especialmente em regiões designadas como florestas reservadas ou protegidas. Conceitos de território e fronteiras, extraídos de discursos masculinistas de conquista e captura, de cercamentos e “divisões”, predominam com o objetivo de impor barreiras espaciais administrativas a um continuo ecológico que era a floresta.

Através do uso de patriarcados institucionais, o Departamento Florestal atribuiu a si o papel de julgar a suposta violação das regras nas florestas. Assim, continua punindo e criminalizando os habitantes da floresta por atos de “invasão” ou responsabilizando as comunidades pela destruição das florestas e adotando atos agressivos de despejo. Os conflitos têm raiz na lacuna entre a propriedade formalmente reconhecida e a terra mantida e manejada de forma consuetudinária, e leva à apropriação de terras por pessoas de fora e à degradação ambiental. (5) A tendência a impor regimes de propriedade privada sobre antigos bens comuns aumentou não apenas a percepção do eu como outro, mas também o risco de as comunidades sofrerem com pobreza, saúde precária e abusos aos direitos humanos, além de tornar inseguros os direitos de posse dentro das estruturas jurídicas construídas de forma patriarcal, aceitáveis ​​para o governo.

A violência e os processos de exploração vivenciados pelas mulheres parecem uma metáfora do afastamento em relação às formas pelas quais as comunidades sabem viver e estar em suas sociedades que se baseiam na floresta. Embora as sociedades adivasis não estivessem livres da violência e da marca dos patriarcados, as mulheres eram reconhecidas como mantenedoras dessas sociedades e dos meios sociais necessários para enfrentar os problemas sociais que as atingiam, à medida que surgiam. No entanto, com o passar das décadas, o patriarcado aprofundou suas incursões em terras florestais, através de meios mercadológicos típicos dos regimes de propriedade privada e da percepção das mulheres como secundárias.

Mais explicitamente, a presença masculina do Estado nas florestas tem se dado na forma de um aparato de segurança que visa combater o que esse mesmo Estado chama de “extremismo de esquerda”, bem como ativistas de direitos humanos e pesquisadores. É de conhecimento geral que os sistemas de governança florestal são altamente falhos, com grandes extensões de terra estéril sendo rotuladas como florestas e vice-versa. As poucas terras disponíveis para as comunidades, os problemas da migração como resultado de expulsão induzida pelo desenvolvimento e da crescente incidência de violência nas áreas florestais são motivados pelas ambiguidades na implementação de leis que costumam ser criadas para servir às manipulações dos atores do mercado e do Estado autoritário. Nesse redemoinho, com suas lutas cotidianas, as mulheres são as mais expostas à ira dos guardas florestais locais. Ao proteger as suas florestas, elas também protegem aquelas que as máfias florestais desejam obter para sua pilhagem, enquanto resistem à tomada de florestas por parte do Estado para alocá-las a seus interesses comerciais, como ocorreu na região de Hasdeo, em Chattisgarh, ou na região de Talabira, em Odisha. (6) Essas terras comuns, que têm sido fonte de sustento e legado como espaços compartilhados e sagrados, agora são reivindicados pelas comunidades, que resistem aos desvios e têm pouca oportunidade de manejar, pois o Departamento Florestal e os Conservacionistas tradicionais descartam e ridicularizam as sabedorias dessas comunidades e querem “proteger” as florestas de quem realmente as guardou e protegeu, e coexistiu com elas!

Negociando a Lei de Direitos Florestais (FRA)

A Lei de Direitos Florestais (Forest Rights Act, FRA) foi proposta como forma de enfrentar a “injustiça histórica” ​​em relação aos Adivasis e reconhece direitos à floresta de comunidades e indivíduos. Os movimentos e as pessoas, que se uniram sob a bandeira da Campanha pela Sobrevivência e Dignidade (CSD) para propor e pressionar pela promulgação dessa Lei, concentraram-se principalmente na proteção das florestas comunitárias. Seus argumentos derivavam da sabedoria intuitiva do modo de vida adivasi, e não de uma posição de gênero (na verdade, o autor foi alvo da ira dos líderes de movimentos que negavam as preocupações de gênero e rejeitavam explicitamente posicionamentos desse tipo como sendo oportunismo em relação ao debate internacional sobre o desenvolvimento). A inclusão de mulheres como coparticipantes foi uma questão que “entrou silenciosamente na pauta, sem muita resistência, já que as mulheres fazem parte da sociedade, e elas precisam de reconhecimento por seus papéis”, como reconheceu em 2017 um dos principais membros da CSD, em uma reunião da MAKAAM, que busca o reconhecimento e os direitos das agricultoras na Índia.

Porém, na implementação da Lei, o foco predominante passou para a reivindicação de direitos individuais de propriedade, sob influência da visão dominante das sociedades patriarcais e impulsionado pelos esforços de ONGs e da sociedade civil, à medida que os liberais progressistas buscavam implementar a FRA efetivamente, no âmbito de um “marco de direitos”. (7) Portanto, o reconhecimento de reivindicações em nome de indivíduos se tornou a questão principal, e a prioridade de gênero passou a ser o registro de nomes de mulheres como cotitulares. Na ânsia de garantir a implementação da Lei, um regime persistente, proletário, privado e esmagador obrigou as comunidades Adivasis a nadar nas marés da propriedade privada. Somente com a adoção da FRA, em 2006, é que as sociedades tribais começaram a incluir mulheres na posse de terras por meio de reivindicações dentro dessa lei, embora várias sociedades tenham adotado essas normas patriarcais de registro de propriedades privadas muito antes.

As disposições da Lei para representação nos órgãos de decisão também levaram à inclusão de mulheres nos Comitês de Direitos à Floresta mas continua a haver resistência à participação ativa delas nos fóruns tradicionais de decisão, descumprindo as disposições da FRA 2006. Também há tentativas de ocultar as separações entre Comitê de Manejo Florestal Conjunto e os Comitês de Direitos à Floresta, e de reconhecer o primeiro segundo a FRA, descumprindo as disposições da lei. Do ponto de vista da governança democrática, as mulheres perceberam que é importante resistir a isso, pois a FRA é uma lei e deve prevalecer, mas os incentivos financeiros convencem as pessoas a fazer falsas promessas de benefícios para continuar permitindo que prevaleça o Manejo Florestal Conjunto. Como os Comitês de Manejo Florestal Conjunto estão recebendo grandes dotações em dinheiro dos recursos da Lei do Fundo de Florestamento Compensatório, (8) fica difícil recusar ou rejeitar esse Manejo. Assim, o programa de Manejo Florestal Conjunto, introduzido como um esquema progressista em um regime burocrático autoritário para promover estratégias progressistas de governança da “silvicultura participativa” através de medidas como a representação das mulheres na liderança, continua sendo amplamente controlado pelo Departamento Florestal autoritário para solapar a Lei dos Direitos à Floresta e garantir a continuidade do controle do Departamento sobre os recursos florestais comunitários.

A legislação recente sobre a chamada “florestamento compensatório” aprofunda essa ironia, desviando as florestas tradicionais indígenas para vários propósitos, ao mesmo tempo em que se ocupam terras em outros lugares para “compensar” o que foi desviado (leia-se: destruído). O desvio de florestas continua sendo uma estratégia para aumentar o crescimento do Estado, dando acesso a recursos minerais e liberando terras para o projeto de desenvolvimento. Embora a Lei de Direitos à Floresta estabeleça o consentimento obrigatório das comunidades afetadas, os processos para esse consentimento são contornados ou frustrados por completo. As mulheres enfatizaram repetidamente a forma como essa alienação e essa expropriação geram uma fratura profunda em seus modos de vida como comunidades ecológicas, os quais as autoridades florestais geralmente rejeitam como ficção de um passado que já não existe mais.

A Política Florestal Nacional de 1988 reconheceu “a tendência a considerar as florestas como recurso gerador de receita”, e a Nova Versão disso as vê como um meio de aumentar o potencial de renda com ênfase na madeira e na produtividade. A Política Florestal Nacional falava em “criar um movimento popular de massas com o envolvimento de mulheres”, cujo “principal objetivo seria garantir estabilidade ambiental e manutenção do equilíbrio ecológico…” e afirmava que “[a] derivação do benefício econômico direto deve ser subordinada a esse objetivo principal”. No entanto, esses objetivos foram sobrepujados pelas práticas de ganho econômico, e estão cada vez mais diluídos em uma interação minimalista e instrumentalizada com as mulheres, principalmente como mão de obra para as ações realizadas pelo Departamento de Florestas.

Em nítido contraste, as mulheres descrevem as florestas como morada, espaço de vida, recurso de subsistência, meio vital para a sustentabilidade e a manutenção de uma existência ecológica, espaço seguro. Portanto, a conservação e o manejo dessas florestas representam um meio de sobrevivência e uma tradição cultural praticada quase que intuitivamente e com base em séculos de sabedoria herdada. Em uma recente entrevista coletiva organizada pela MAKAAM (um fórum de direitos das agricultoras) para fortalecer as reivindicações das mulheres por florestas, mulheres de Mandla Madhya Pradesh destacaram essa relação e falaram sobre as ricas biodiversidades que nutriam suas necessidades. Elas listaram 24 espécies de plantas medicinais não cultivadas e produtos florestais não madeireiros que lhes proporcionavam renda, além de alimento e a lenha da madeira seca que coletavam das florestas. Mais recentemente, no entanto, as florestas se tornaram espaços de medo e escassez, pois as mulheres continuam buscando alimentos, mesmo quando são perseguidas, criminalizadas e punidas por um Departamento Florestal cada vez mais controlador.

Isso alterou as relações sociais com as florestas, bem como as relações intracomunitárias, uma vez que as comunidades tribais e adivasis são influenciadas por práticas religiosas e culturais das sociedades patriarcais tradicionais e, simultaneamente, atraídas pela teia dos regimes de propriedade. O futuro dessas comunidades e suas florestas está em perigo, enquanto elas trafegam na direção do confronto com regimes que pouco respeitam seus modos de viver e conhecer, mas têm profundo interesse nas mercadorias derivadas de suas terras.

Dra. Soma Kishore Parthasarathy, somakp@gmail.com
Mahila Kisan Adhikaar Manch, MAKAAM (Fórum pelos Direitos das Mulheres Agricultoras), Índia

(1) O Esquema Conjunto de Manejo Florestal visava a participação das pessoas na silvicultura social e no florestamento.
(2) Baviskar EPW 1994, p. 2945.
(3) Skaria Studies in History, Sage pub, 1998, p. 194.
(4) O patriarcado é um sistema social no qual os homens detêm o poder fundamental e predominam em papéis de liderança política, autoridade moral, privilégio social e controle dos direitos de propriedade. Os ideais patriarcais funcionam como explicação e justificativa desse domínio e o atribuem às diferenças “naturais” inerentes entre homens e mulheres. Veja https://wrm.org.uy/articles-from-the-wrm-bulletin/section1/india-women-commons-and-patriarchy/
(5) ILDC
(6) Veja  https://www.newsclick.in/Chhattisgarh-NCL-Mine-Operated-by-Adani-Group-Faces-Roadblocks-Owing-to-Tribal-Resistance
A mineração surgiu como um obstáculo importante ao reconhecimento dos direitos das comunidades e às áreas onde deveria haver santuários. Nandini Sunder documenta o exemplo mais notório da aldeia de Ghatbarra, em Chhattisgarh, que recebeu direitos florestais comunitários em 2013 nas florestas de Hasdeo Arand (mais de 820 hectares dos 2.300 hectares reivindicados), mas teve seu título cancelado subitamente em 2016
(7) Veja, por exemplo o Boletim do WRM, Ciladas, dilemas e contradições no discurso sobre direitos nas florestas, 2017
(8) O CAF é o Fundo de Florestamento Compensatório, vulgarmente conhecido como Lei CAMPA, recentemente aprovada em 2016 pelo governo da Índia. segundo a lei, o Estado estabelece uma autoridade para receber fundos de indústrias, correspondentes à compensação pelo florestamento, “creditando o dinheiro recebido de agências que o usarão para florestamento compensatório, florestamento compensatório adicional, florestamento compensatório penal, valor atual líquido, e todos os outros valores recuperados por essas agências dentro da Lei de Conservação Florestal de 1980”. Para ler essa emenda, consulte a nota informativa aqui.