Peru: Resistência e organização comunitária para a defesa da floresta

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Amazônia peruana. Foto: Sebastián Castañeda/Mongabay Latam.

A bacia do Putumayo cobre uma área de 12 milhões de hectares e representa 1,7% da bacia amazônica. O rio nasce na Colômbia e flui ao longo de grande parte da fronteira com o Equador e o Peru, até desaguar no Amazonas, no Brasil. É um dos poucos rios amazônicos que ainda flui livremente.

Grande parte dessa bacia, principalmente na região do Peru, cobre territórios indígenas e áreas protegidas criadas por Estados sem levar em conta os direitos territoriais dos povos que vivem na região. Além disso, ali também existem extensas áreas de floresta intacta, onde vivem Povos Indígenas em Isolamento Voluntário.

Os Povos Indígenas que hoje habitam a região já enfrentaram o que foi chamado de genocídio do Putumayo, ocorrido entre 1879 e 1913, durante a febre da extração da borracha. Estima-se que cerca de 100 mil indígenas da região amazônica tenham sido brutalmente explorados, abusados ​​e torturados (1) pelas empresas de borracha.

A maldição dos recursos

Tal como acontece em outras áreas da Amazônia, a região da Bacia do Putumayo sofre os terríveis impactos do desmatamento e da degradação florestal, principalmente como resultado da mineração e da exploração de madeira. Além disso, nos últimos anos, as máfias que controlam ambos os negócios se envolveram com as do tráfico de drogas e as guerrilhas armadas (2). O resultado é o aumento da presença de grupos criminosos armados, ao que se soma a ausência do Estado no cumprimento de seu papel de garantir os direitos do povo.

A tranquilidade em que viviam as comunidades indígenas às margens do Putumayo está se perdendo. A violência se tornou um problema cotidiano. Os traficantes de drogas estão usando a região para expandir as plantações de coca, o que representa uma ameaça aos territórios indígenas. As comunidades não têm possibilidade de recusar a invasão de seus territórios pelos traficantes de drogas. Ao mesmo tempo, a total ausência de programas estatais destinados a gerar alternativas de vida, principalmente para os mais jovens, faz com que esse grupo da população seja tentado a se juntar a gangues criminosas.
 
O Peru tem a segunda maior área de floresta amazônica, ficando atrás apenas do Brasil. Também ocupa o terceiro lugar em termos de índices de desmatamento, atrás do Brasil e da Bolívia. Um relatório recente estima que, nas últimas duas décadas, foram perdidos mais de 2,7 milhões de hectares de florestas, entre outras causas, em função das plantações de dendezeiros. (3)

Para complicar ainda mais o futuro das florestas amazônicas e das inúmeras comunidades indígenas que ocupam esses territórios há milênios, no início do ano, o congresso peruano aprovou uma série de modificações na Lei de Florestas e Fauna Silvestre. Organizações indígenas e da sociedade civil denunciam que a lei não só foi aprovada às pressas e sem respeitar os prazos parlamentares, mas também que as alterações promovem o desmatamento e facilitam a concessão de direitos sobre suas florestas a terceiros. “Violaram nossos direitos à consulta e ao consentimento prévio, livre e informado. Ainda mais grave, essa alteração promoverá a desapropriação de nossos territórios ancestrais integrais e aumentará as ameaças à vida dos defensores ambientais indígenas, bem como à vida e à integridade biológica, cultural, ambiental e espiritual”, afirmaram em carta enviada às autoridades do Congresso (4).

A Associação Interétnica para o Desenvolvimento da Selva Peruana (AIDESEP), organização que reúne vários povos indígenas amazônicos, divulgou um comunicado no qual rejeita as alterações na Lei Florestal. Entre os argumentos, expressam que o mais prejudicial dessa alteração é a mudança no uso de áreas florestais e terras protegidas para fins agrícolas, o que acontecia de forma excepcional e em conformidade com regras técnicas. “No entanto, agora as mudanças podem ser feitas ‘legalmente’, sem respeitar critérios técnicos, permitindo o atentado às florestas, que nos protegem dos impactos da crise climática”, alertaram (5).

As alterações resultam em benefícios claros para setores agrícolas, como o dendê, que agora pode acelerar sua expansão na Amazônia.

Apesar do contexto difícil, as comunidades que vivem na bacia do Putumayo ainda resistem e procuram formas de permanecer em seus territórios.

O WRM conversou com Arlen Ribeira, indígena do povo Witoto, no Peru:

WRM: Arlen, nos conte um pouco sobre você.

Meu nome é Arlen Ribeira. Sou indígena do povo Witoto [também autodenominado Muina Murui]. Vivo na fronteira do Peru com a Colômbia, e todas as minhas gerações anteriores foram vítimas do período da borracha. Parte da nossa família, que sobreviveu, partiu de La Chorrera, na Colômbia, fugiu e se estabeleceu ao longo do Putumayo para sobreviver e não ser perseguida pelos seringalistas.

Desde muito pequeno, eu convivo com meus avós e com os mais velhos, os sábios. Fui criado em maloca. A maloca é a nossa casa indígena tradicional, a casa da sabedoria. Então eu tenho uma ligação muito forte com a luta dos nossos povos. Promovi a proteção territorial e humana dos Povos Indígenas em Isolamento e Contato Inicial e participei de inúmeros eventos no Peru, mas também em nível internacional, ligados à defesa do território.

WRM: Recentemente, foi criada a “Rede de Territorialidades Indígenas da Bacia Amazônica para a Autodeterminação” (Rede Tica). Você pode nos dizer o que é essa Rede e quais são seus objetivos?

Essa rede só começou a tomar forma no ano passado (2023). Reunimos membros de quatro federações que possuem muitas áreas naturais protegidas e onde também habitam (em seus territórios) Povos Indígenas isolados e em contato inicial.

Nossas organizações que compõem a Rede Tica são a Federação das Comunidades Nativas Fronteiriças do Putumayo e a Comunidade Matses, localizada em Loreto e com um dos maiores territórios, que inclui áreas protegidas. Também são membros da Rede Tica os irmãos Iskonawa, da Associação Iskonawa para o Desenvolvimento, que estão na Serra do Divisor. E, por fim, a Federação das Comunidades Nativas do Purus, que também tem em seu território a maior área protegida do Peru; eles estão em Pucallpa, Ucayali.

Os territórios de todas essas comunidades e federações cobrem cerca de 13 milhões de hectares (o tamanho da Nicarágua). Parte das nossas reivindicações e da nossa luta é que que sejam reconhecidas todas aquelas áreas naturais protegidas criadas pelo Estado, muitas vezes sem conhecimento adequado por parte dos Povos Indígenas, como os nossos territórios que nos foram tirados. Que a situação seja revertida de uma forma ou de outra. Ou, na falta disso, pode haver alguma regulamentação que garanta os nossos direitos sobre esses territórios, os nossos costumes, os nossos lugares sagrados e os nossos direitos de uso da floresta que sempre tivemos como fonte de subsistência.

Além disso, vemos que há uma enorme luta supostamente empreendida pelos Estados contra as mudanças climáticas. Mas no dia a dia, quem está lutando efetivamente contra as mudanças climáticas são os Povos Indígenas, através das nossas florestas.

Nossos territórios geram chuvas, e essas chuvas vão para diversos lugares, chegam à Argentina, passam pelo Brasil e atravessam o mundo. Em outras palavras, desempenham um papel muito importante.

Além disso, também queremos que nossos territórios e nossas contribuições à luta contra as mudanças climáticas sejam reconhecidos. Mas não queremos projetos de carbono, como os de REDD (Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação), não queremos o projeto de carbono como foi concebido porque representa uma grave ameaça à posse das nossas terras. Além disso, essa forma como ele está concebido contribui para o aquecimento global, porque significa que as empresas que praticam REDD não estão reduzindo suas emissões.

Eles mandam cuidar das florestas, mas continuam poluindo. E esse projeto de REDD, como todos os negócios de carbono, está associado a uma série de armadilhas nas quais os Povos Indígenas perdem a titularidade (da terra). A ameaça é a perda de territórios, de recursos biológicos e de direitos humanos e coletivos. Além disso, geram deslocamento e fome porque fazem contratos de 20 ou 30 anos sem pensar no futuro dos povos. E os recursos (econômicos) supostamente gerados pelos projetos de carbono como o REDD são apenas mentiras, nada mais. Os poucos recursos que às vezes chegam às comunidades só geram divisões e conflitos internos entre seus membros. E esses conflitos internos levam algumas famílias a tomar decisões diferentes para negociar florestas.

Então, o que buscamos é garantir a nossa própria autonomia. Essa autonomia indígena é o que vem contribuindo para a sustentabilidade da biodiversidade, das florestas e do nosso planeta. Significa que somos nós que apoiamos o planeta através dos nossos conhecimentos, e o que queremos é chamar a atenção dos Estados e da comunidade internacional. Nós, Povos Indígenas, temos a solução climática, sem a necessidade de destruir sociedades, sem a necessidade de desapropriar territórios como estamos vendo agora.

Assim, também através do REDD foram criadas muitas áreas naturais protegidas. E isso é muito grave e prejudicial para os nossos direitos. Deveria ser dada mais atenção às propostas dos Povos Indígenas, por exemplo, na Conferência das Partes sobre as Mudanças Climáticas, com o objetivo de travar uma luta efetiva. Temos muitas áreas naturais protegidas e não temos acesso nem nos beneficiamos de fundos climáticos ou fundos de conservação. Esse é o nosso grande problema. Só os nossos territórios ancestrais são cerca de 13 milhões de hectares sobre os quais foram criadas áreas naturais protegidas, e as quatro federações não têm qualquer tipo de benefício em termos de conservação ou das mudanças climáticas. Então, o que buscamos é governar nossos territórios, de forma autônoma, com livre determinação, e também respeitando a Convenção 169 e a Declaração Universal dos Direitos dos Povos Indígenas.

WRM: Como a Rede Tica estabeleceu uma posição contrária e crítica às políticas de REDD?

Bom, eu trabalhei com nossos irmãos de Purus, com os Matses e com os irmãos Iskonawa. Tivemos conversas. Pensando naturalmente, que papel o nosso território desempenha e por que o estão tirando de nós? Aí vemos que falam de tantos bilhões de dólares, e aparecem muitas ONGs articuladas com o Ministério do Meio Ambiente, e são elas que expropriaram os nossos territórios. E depois realizam oficinas ou congressos e limitam o uso dos nossos territórios. E nós nos perguntamos: por que essas coisas acontecem? A que se deve isso? Então, a partir do nosso pouco conhecimento, por não termos muito acesso a capacitações, analisamos que existe um negócio obscuro que ninguém nos conta. E esse negócio obscuro é o carbono.

Por exemplo, no território dos Iskonawa, foi criado o Parque Nacional Sierra del Divisor. Como estão participando os irmãos Iskonawa? Dividiram os territórios deles, eles não têm acesso aos recursos, e sentem que seu próprio território está sendo expropriado e não têm título de propriedade. Quando querem se estabelecer em uma área, são retirados de lá. Em outras palavras, voltamos a ser nômades. Tiram nossos espaços e já não podemos mais viver em nosso território ancestral.

Foi assim que criamos a Rede Tica, mas é um processo longo, de muita luta. E apelamos às instituições para que demonstrem solidariedade, para que nos apoiem. Porque ao fazer a reivindicação territorial, também sofremos ameaças, também sofremos com as autoridades tanto do Peru como das ONGs que se unem e tentam dividir as nossas organizações, destruir a nossa unidade territorial para que não possamos reivindicar os nossos direitos.

Estamos preocupados com como viveremos daqui a 20, 30, 40, 50 anos, caso deixem nosso território cada vez menor. Já não conseguiremos satisfazer as nossas necessidades básicas como alimentação, caça, pesca e coleta. O Estado também não cria projetos alternativos. E ainda por cima entram os madeireiros e garimpeiros ilegais, abrindo estradas sobre nossos territórios indígenas, além das áreas protegidas. Nosso futuro é muito incerto.

E se não nos levantarmos agora com ajuda solidária, para que a nossa voz possa ser ouvida, o futuro será muito difícil para as nossas comunidades. Acho que vai haver mais pobreza, mais necessidade. E vocês sabem que o Governo não está presente na Amazônia peruana. Não vivemos do Governo. Vivemos da floresta.

E o que acontecerá depois, quando houver necessidade de aproveitar mais territórios ancestrais? Porque nós não depredamos a Amazônia, sempre tivemos nossas florestas, e onde há indígenas, sempre houve florestas, e nessas florestas que conservamos, o Estado já criou áreas naturais protegidas. Essa é a nossa grande preocupação.

A posição dos governos na Cúpula de Belém

No ano passado, houve um encontro entre dois presidentes da região amazônica, na Cúpula de Belém, no Brasil, que emitiram a Declaração de Belém. Os presidentes expressam sua visão sobre o futuro da Amazônia e levantam a necessidade de continuar o desenvolvimento como forma de combater a pobreza, promovendo projetos extrativistas, como agronegócio, mineração, etc. Afirmam que é necessário combater as atividades “ilegais” e, portanto, não questionam a mineração, por exemplo, desde que seja “legal”. Assim, temos uma das maiores minas do mundo, de propriedade da empresa Vale, no coração da Amazônia, com todas as suas licenças e autorizações em dia. Paralelamente, a declaração estabelece a necessidade de políticas de proteção do tipo REDD.

WRM: Qual a sua opinião sobre essa visão de que os governos continuam apoiando o extrativismo “legal”?

Eu estive na Cúpula de Belém. Essa reunião foi declaratória, nada mais. Imagine que o Peru, um dos signatários da declaração, acaba de aprovar uma nova lei florestal na qual estão praticamente autorizadas as expropriações, as invasões territoriais. Ou seja, os governos não cumprem e não melhoram as condições de vida, pelo contrário, eles nos empobrecem. Dizem: “vamos desenvolver o Putumayo, vamos construir estradas”. Para os indígenas, essas estradas significam mais pobreza, invasões, criminalidade. Pela estrada chegam mais garimpeiros ilegais, madeireiros ilegais, narcotráfico, violência, exploração humana, expropriação territorial, migração vinda de outras partes. A estrada serve para o empresário extrair todos os recursos que existem em um lugar. A única coisa que nós indígenas temos que fazer é não dar crédito a essas declarações, não confiar nesse tipo de declarações. Pelo contrário, o que temos que fazer é trabalhar pela nossa autodeterminação, proteger o nosso território, os nossos direitos e a forma como vamos viver. Como me disse meu avô: “Eu não tenho dinheiro, eu não tenho riqueza. Até onde você conseguir enxergar a floresta, você pode caminhar lá, e disso você vai viver. “Cuide e observe como fazemos a nossa agricultura, temos abundância, temos saúde, não falta comida e não falta alimento.” Essa é a nossa riqueza.


(1) Thomson, N.; Pineda Camacho, R. El libro rojo del Putumayo, 1913.
(2) Rio de vida y muerte, Rio Putumayo.
(3) Environmental Investigation Agency (EIA), New report exposes illegal Amazon deforestation as Peru approves scandalous ‘amnesty’ law forgiving past forest crimes, February 2024
4) Organizaciones indígenas nacionales rechazan la modificatoria de la Ley Forestal que atenta contra los derechos indígenas, January 2024
(5) Pronunciamiento: Rechazamos aprobación de la modificación de la Ley forestal y de fauna silvestre que vulnera derechos colectivos de los pueblos indígenas y pone en riesgo la Amazonía, December 2023