(Des)Compensando a democracia

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O comércio e as compensações de carbono desviam a atenção das mudanças sistêmicas mais abrangentes e das ações políticas coletivas que devem ser adotadas na transição para uma economia de baixo carbono (LCE). A promoção de formas de abordar a mudança climática mais efetivas e empodeiradoras implica deixar de lado o reducionismo tacanho do dogma do livre mercado, a falsa economia das supostas recoperações rápidas, os próprios interesses no curto prazo dos grandes negócios.

O conceito que serve de base para todo o sistema de comércio e compensações de carbono é que uma tonelada de carbono aqui é exatamente igual a uma tonelada de carbono lá. Ou seja, se é mais barato reduzir as emissões na Índia do que no Reino Unido, então é possível conseguir o mesmo benefício para o clima de uma forma mais efetiva em termos de custos ao promover a redução na Índia.

No entanto, a sedutora simplicidade desse conceito está baseada no desmoronamento de um conjunto de considerações importantes, tais como direitos territoriais, desigualdades Norte- Sul, lutas locais, poder corporativo e história colonial, e tudo se reduz a uma simples questão de custo-benefício. Os mecanismos do comércio e compensação das emissões representam uma abordagem reducionista da mudança climática que refuta variáveis complexas em favor da relação custo-benefício.

É assim que quando a Fundação holandesa FACE planta árvores no parque nacional de Kibale na Uganda para compensar os vôos dos consumidores, ignora o fato de essas terras terem sido palco de deslocamentos violentos no passado recente e que ainda são ardentemente contestados pelas comunidades que habitavam nelas. Quando as empresas compram créditos de carbono do programa de Comércio de Emissões da União Européia, a única coisa que realmente importa é o baixo custo das supostas reduções de emissões. No entanto, toda compensação nos países do Sul para justificar as emissões dos países do Norte contorna completamente o problema da extrema disparidade nos níveis de consumo de carbono per capita, e assume que as reduções de emissões no Sul podem ser tratadas como mais uma mercadoria da colônia que pode ser extraída e comercializada.

Mesmo dentro da lógica do mercado obcecada nos custos, o uso do comércio e da compensação de carbono vai de encontro ao senso comum. O propósito do sistema é providenciar oportunidades para as empresas do Norte adiarem a custosa transição a tecnologias de baixas emissões de carbono. Isso é realmente ‘eficaz em custos’ no curto prazo, já que é mais fácil e mais barato comprar créditos de carbono do que empreender  a complicada operação de promover tais mudanças. Mas os estudos têm demonstrado uma e outra vez que quanto mais essas mudanças forem adiadas, mais caro e difícil será, em termos de capturar a sociedade na rede da dependência dos combustíveis fósseis, e inclusive será mais custosa a adaptação aos impactos exacerbados da mudança climática.

Já existe certa documentação sobre a forma em que a compensação pode ser usada pelos países para evitarem assumir suas responsabilidades conforme os objetivos de Kioto, e sobre a forma em que fundamentalmente companhias insustentáveis como a Land Rover, BP e BA podem usar as compensações na tentativa de obterem uma legitimidade ambiental imerecida.  O que resulta mais perturbador são as novas formas em que as compensações vêm sendo aplicadas com criatividade pelo setor corporativo em vistas de favorecer seus programas.

Agora, a corrosiva influência da ilogicidade das compensações não está apenas restrita ao âmbito da mudança climática e das emissões de carbono. A Coca Cola tem sido o assunto de campanhas sustentadas por grupos de justiça social em todo o mundo, mas suas práticas empresariais na Índia têm recebido particular atenção. Em 2003, o Centro para a Ciência e o Ambiente, com base em Delhi, emitiu um relatório sobre testes laboratoriais que indicavam níveis de pesticidas e inseticidas entre onze e dezessete vezes maiores que o máximo estabelecido pela União Européia para a água potável, em vários refrigerantes que estavam sendo vendidos pela Coca Cola na Índia. O Centro de Recursos da Índia com base nos EUA tem feito inúmeras alegações contra a companhia, afirmando que provoca uma importante escassez de água para as comunidades locais, e que a planta engarrafadora polui o solo e a água subterrânea circundante. Em março de 2004, funcionários públicos de Kerala, um estado no sul da Índia, fecharam uma planta engarrafadora da Coca- Cola devido às reclamações feitas pelas comunidades locais e ativistas de a companhia ter secado e poluído as existências de água no local.

Em agosto de 2007, enquanto bebericava uma lata de Coca light na frente do logótipo do panda do Fundo Mundial de Vida Silvestre (WWF), o diretor executivo da Coca Cola, Neville Isdell anunciou uma parceria de 20 milhões de dólares com o WWF com o objetivo de "repor cada gota de água que nós usamos em nossas bebidas e em sua produção." Além disso, para reduzir e reciclar a água que está sendo usada, o terceiro componente do pacote foi o reabastecimento. Esse reabastecimento não iria ocorrer nos locais onde a água tinha sido esgotada, mas através de uma série de projetos que ocorreriam em outras partes do mundo- de fato, trata-se de compensações de água.

Essa quantia de 20 milhões de dólares (que representa menos de 1% do enorme orçamento publicitário anual de 2,4 bilhões de dólares da Coca Cola) vem sendo usada para frustrar a enorme quantidade de propaganda negativa que a Coca Cola tem recebido devido a suas práticas de esgotar e poluir a água em países como a Índia. A companhia tem desenvolvido uma vigorosa campanha de negação de responsabilidade por qualquer um dos impactos devastadores que essas comunidades têm sofrido; por isso, ao usar compensações de água, pode agir como o cara bom da corporação em outras partes do mundo sem ter sequer que reconhecer o dano que tem causado em outros lugares.

O potencial das compensações de água não está limitado a apenas atos individuais para dar um verniz ecologista à companhia. Alguns comentaristas, como John Regan, um fornecedor de créditos de carbono da iniciativa Chicago Climate Exchange considera o programa de compensação de água da Coca Cola como "um sinal encorajador de uma necessidade por um programa de comercialização de créditos de água." A idéia é que se uma companhia não controlou a poluição da água em forma suficiente, pode comprar créditos de outra companhia que tenha controlado sua poluição da água além de seus objetivos.

Como o comércio de carbono, esse tipo de programas providenciaria amplas oportunidades para procedimentos obscuros de contabilidade e a confusão da atividade comercial  para dar a impressão de atividade e mascarar o fato de que pouca coisa acontece na realidade para tratar a problemática fundamental da degradação ambiental e da injustiça social.

Muitos outros programas para mercantilizar e comercializar os  problemas ambientais têm sido propostos ou estão em desenvolvimento, inclusive a comercialização de aterros sanitários, a comercialização de espécies ameaçadas e os bancos de zonas úmidas. A ironia é que se trata da perpétua expansão das economias de mercado que têm criado tal pressão sobre os recursos naturais e ameaçado todo tipo de ecossistemas ao aumentar os níveis de poluição industrial. Agora, as mesmas forças do mercado vêm se posicionando como a panacéia para nossos múltiplos males ambientais. Esses programas de mercantilização pouco têm a ver com o interesse público- trata-se de oportunidades de negócios para capitalizar as transações dos novos mercados. O que é proclamado como uma solução mais barata para a indústria a fim de satisfazer os padrões ambientais transforma uma questão política e social em uma questão de mercado. E assim compensa a democracia.

Se nós queremos lutar oportunamente com o problema da mudança climática, devemos desenvolver e solicitar uma analise sistêmica que vá além da fixação com os custos ou até com o dióxido de carbono, e promover sinergias com outras lutas importantes nas áreas do comércio, finanças, direitos humanos, biodiversidade, justiça ambiental e democracia.

Por Kevin Smith, Carbon Trade Watch/Transnational Institute (publicado previamente na revista Resurgence de março- abril de 2008), e-mail: kevin@carbontradewatch.org, enviado pelo autor.