O que é uma floresta e quando é uma floresta? Uma reflexão crítica sobre os conceitos usados nos processos internacionais de políticas florestais

No dia 21 de março, promovido pela FAO como o Dia Internacional das Florestas, o WRM divulga um documento sobre a importância das palavras que usamos. O texto examina a forma em que conceitos como “florestas”, que têm sido historicamente impostos e adotados sem levar em consideração uma diversidade de pontos de vista – especificamente os dos povos que dependem das florestas – contribuem para a criação de políticas que não reconhecem essa diversidade nem interrompem o desmatamento.

A Cúpula da Amazônia: Extrativismo e violência em nome da “bioeconomia” e da “sustentabilidade”

Nos dias 8 e 9 de agosto de 2023, a cidade brasileira de Belém foi palco da Cúpula da Amazônia, um encontro inusitado que reuniu os presidentes de Brasil, Colômbia, Peru, Bolívia, Equador, Venezuela, Guiana e Suriname para discutir as questões da região. Na pauta, entre outros temas, um dos principais motivos do encontro: o desafio urgente de combater o desmatamento.
 
A Cúpula resultou na Declaração de Belém, na qual os presidentes sugerem duas linhas de ação. A primeira é promover o “desenvolvimento sustentável”; a segunda, a “proteção integral” ou a “preservação” da Amazônia, com a meta de “desmatamento zero” até 2030. Numa das frases dessa Declaração, os presidentes afirmam que pretendem “combater o desmatamento” e, ao mesmo tempo, “erradicar e interromper o avanço das atividades de extração ilegal de recursos naturais” [grifo nosso].
 
Seguindo esse raciocínio, a Declaração parece sugerir que não haveria problemas se as empresas e outros atores por trás do extrativismo da mineração, do petróleo, da madeira e do agronegócio, bem como as grandes hidrelétricas, estradas, ferrovias e portos de que o modelo extrativo necessita, atuassem legalmente, com suas licenças em dia.

Ora, a realidade da Amazônia tem mostrado exatamente o oposto. Os setores citados, ligados ao modelo do extrativismo industrial, são causas notórias do desmatamento. Quando praticadas de forma ilegal, apenas tendem a aumentar seus impactos destrutivos e violentos. A Declaração de Belém, por sua vez, nem menciona essas causas, muito menos analisa seus graves impactos nos territórios de povos indígenas, ribeirinhos, comunidades tradicionais e camponesas.

A dura realidade é que os governos da região Amazônica, em nome do “desenvolvimento sustentável”, continuam incentivando o extrativismo e, em função disso, não admitem se comprometer com medidas estruturais que rompem com o modelo extrativo, como parar a extração de petróleo na Amazônia, proposta por um dos presidentes que participaram da reunião. Por isso, o próprio conceito de “desenvolvimento sustentável” tornou-se uma causa subjacente, indireta, do desmatamento. Significa que, quando os presidentes apelam, na Declaração de Belém, por mais “desenvolvimento sustentável”, na prática, também fazem um apelo por mais desmatamento.

Hoje em dia, é difícil achar um setor destrutivo na Amazônia que não se autodenomine “sustentável”:  o manejo “sustentável”, a soja “sustentável”, o dendê “sustentável”, a mineração “sustentável”, tudo virou “sustentável”. Os setores também usam outros artifícios, como os “selos de qualidade” de certificações voluntárias de “sustentabilidade”.

Diálogos Amazônicos e a bioeconomia

Nos dias anteriores à Cúpula, milhares de pessoas, incluindo muitos indígenas, se reuniram em Belém em um evento chamado “Diálogos Amazônicos”, iniciativa do próprio governo brasileiro com a qual afirmou querer incentivar a participação da sociedade civil na Cúpula. No entanto, o conteúdo das propostas e reflexões que foram entregues em cartas não foi incluído na declaração final.

Ao mesmo tempo, o que chamou a atenção nesses “Diálogos” foi a forte presença de grandes ONGs preservacionistas que costumam usar esses espaços para enfatizar conceitos e novas narrativas. Em Belém, falaram muito em “bioeconomia” e na ideia de promover a “floresta viva”, em referência à própria Amazônia.

“Floresta viva” é uma expressão que parece bonita, mas também soa esquisita. Afinal, qual é a floresta que não estaria viva? Lembra outro termo que essas mesmas ONGs têm propagado: floresta em pé. “Floresta em pé? Eu nunca vi uma floresta deitada”, disse certa vez uma liderança comunitária, ao ouvir falar desse termo.

A “floresta em pé” simboliza bem a visão que os promotores da bioeconomia – grandes transnacionais responsáveis pela destruição da Amazônia, bem como grandes ONGs preservacionistas – têm da floresta: uma oportunidade de novos negócios, como a venda de créditos de carbono que beneficiam empresas poluidoras, agora “neutras” em carbono, ao mesmo tempo em que batizam seus “‘velhos’” negócios extrativos como parte da “economia verde”, produzindo “biocombustíveis” e expandindo a mineração para a “transição verde” da economia.

Os promotores da bioeconomia buscam se aliar a governos e grandes organizações de povos indígenas e populações tradicionais. Fazem convites para eventos a portas fechadas e com poucos participantes. Por exemplo, em janeiro de 2023, o governador do estado do Pará, Helder Barbalho, esteve no Fórum Econômico Mundial de Davos, apresentando o “Plano de Bioeconomia” de seu estado às elites do capital mundial – um plano, aliás, elaborado pela ONG preservacionista TNC (1). Em junho, houve a “Conferência Pan-Amazônica pela Bioeconomia” no Rio de Janeiro, com participação, dentre outros, do Earth Fund (Fundo da Terra) do bilionário Jeff Bezos, do Banco Mundial, da WWF e também da organização indígena regional amazônica, a COICA (2). Em agosto, houve a “Conferência Internacional Amazônia e Novas Economias”, apoiada, entre outros, pelo governo do estado do Pará e a VALE (3), uma das maiores mineradoras do mundo, responsável também por um dos mais graves crimes ambientais da história do Brasil, em Brumadinho e Mariana, Minas Gerais.
 
Apesar de não usar a palavra “bioeconomia”, a Declaração de Belém sintetiza perfeitamente a ideia que os promotores dessa ideia buscam impor: mais “desenvolvimento sustentável” com mais “preservação” e sempre visando novas oportunidades de negócios.

“Já chega de falar de bioeconomia”

A Declaração de Belém também fala em “garantir os direitos dos povos indígenas, comunidades locais e tradicionais, incluindo o direito aos territórios e terras habitadas pelos referidos povos, sua posse plena e efetiva”. Mas os próprios acontecimentos em torno da Cúpula logo colocaram essa promessa em cheque.

Na véspera da Cúpula, no município de Tomé-Açu, a 200 km de Belém, quatro indígenas Tembé foram baleados durante dois confrontos com seguranças da empresa Brasil Biofuels (BBF). Os Tembé lutam para que o governo brasileiro demarque seu território, tomado pela BBF, uma empresa que, com todo o apoio do Estado, planta e expande a monocultura com o objetivo de produzir azeite de dendê e biocombustível para a bioeconomia (veja artigo neste boletim).

Uma das participantes dos “Diálogos Amazônicos”, a líder Alessandra Munduruku, de um Povo que luta há anos pela demarcação de seu território, desabafou: “A gente tem que parar com essa violência urgentemente. Precisa da demarcação dos territórios indígenas. Já chega de falar de bioeconomia, de sustentabilidade, se tem uma violência aqui nesse momento”. (4)

O Plano de Ação para as Florestas Tropicais (TFAP) do Banco Mundial e da FAO, de 1986, era parecido com a Declaração de Belém de 2023, propondo ações para promover o “desenvolvimento” com a “proteção” da floresta.  Vale lembrar que o TFAP foi um fracasso, e resultou em mais destruição florestal e mais problemas para as comunidades que dependem da floresta e que foram injustamente responsabilizadas pelo desmatamento. Quarenta anos depois do fracassado Plano do Banco Mundial e seus aliados, a história se repete, indicando que, para os povos indígenas e as populações tradicionais na Amazônia, não resta opção além de que continuar fortalecendo cada vez mais sua articulação, sua integração e suas lutas de resistência.

 

(1)Boletim WRM, REDD e Economia Verde agravam opressão e desmatamento no Pará, Brasil, julho 2023.
(2) Conferência Pan-Amazônica pela Bioeconomia reúne líderes e especialistas para debater formas de impulsar a bioeconomia na Amazônia, June 2019.
(3) Conferência Internacional Amazônia e Novas Economias; Pará e mineração valorizam bioeconomia para promover desenvolvimento sustentável da Amazônia
(4) Na véspera da Cúpula da Amazônia, duas mulheres e um homem do povo Tembé são baleados no Pará.

Yasuní: os alcances de uma vitória

No dia 20 de agosto de 2023, o povo equatoriano foi às urnas em eleições antecipadas para eleger o presidente e os membros da Assembleia Nacional. Além disso, houve duas consultas populares: em Quito, para interromper a mineração no Chocó-Andino e, em nível nacional, para deixar o petróleo no solo do chamado bloco ITT, no Parque Nacional Yasuní. Quase 60% dos eleitores do país disseram sim ao Yasuní. Isso significa que, dentro de um ano, os poços de petróleo devem ser fechados, a infraestrutura, removida, e se deve iniciar um processo de reparação da zona afetada.

O Parque Nacional Yasuní é uma das áreas com maior biodiversidade do mundo e abriga povos indígenas, incluindo os Tagaeri e os Taromenane, que estão em isolamento voluntário. No solo do Yasuní também há petróleo, com três blocos petrolíferos em seu território. O bloco 16, que está em declínio e que passou das mãos da REPSOL para a estatal equatoriana, o bloco 31, que tem muito pouco petróleo bruto, e o ITT ou bloco 43, operado pela estatal PetroEcuador. Em 2016, teve início a extração em seus campos, que contavam com reservas comprovadas de quase 900 milhões de barris de petróleo. Esse óleo é muito pesado, de forma que sua extração requer muita energia, gerando grandes quantidades de resíduos de águas tóxicos e outros poluentes no processo.

Em função dessa realidade e da luta de muitas organizações e grupos, a vitória do Yasuní foi sem dúvida muito esperada e comovente, mas como todos os êxitos, gera desafios.

O Bloco 43, Ishpingo-Tambococha-Tiputini (ITT), no Yasuní, é uma área onde foi construído um enclave petrolífero que deve ser desmontado e retirado do local. Mas o que significa essa retirada? Como se recupera um território sacrificado? Quais são as ações judiciais para enfrentar os abusos cometidos contra a natureza e a população do Yasuní?

Como pano de fundo, vale lembrar que, em 22 de agosto de 2013, nós, de vários grupos autorreconhecidos como o Yasunidos, apresentamos ao Conselho Nacional Eleitoral do Equador um pedido de consulta popular com a seguinte pergunta: “Você concorda que o governo equatoriano mantenha o petróleo bruto do ITT, conhecido como bloco 43, indefinidamente no solo?” Essa consulta popular buscava proteger a vida e o território dos povos indígenas Tagaeri e Taromenane e das comunidades de vida do Parque Nacional Yasuní.

Dez anos depois, em 20 de agosto de 2023, após superar todos os tipos de obstrução por parte do Estado, foi realizada a consulta do Yasuní. Ao mesmo tempo, ocorreu uma consulta regional no Cantão de Quito que visava proibir as atividades de mineração em outra área megadiversa do país, o Chocó Andino. Nessa consulta popular, quase 69% dos residentes de Quito votaram Sim à vida, contra a mineração.

Aprendizagens

O debate sobre a consulta popular foi amplo. O dilema de manter o extrativismo ou interrompê-lo se tornou central durante o processo eleitoral. Apesar de a maioria dos candidatos e candidatas presidenciais ter se oposto abertamente à manutenção do petróleo no solo e de os principais meios de comunicação terem mostrado uma clara inclinação a convencer as pessoas a votarem negativamente, a resposta à consulta foi positiva, recebendo o apoio de 59% do eleitorado nacional. Nenhum dos candidatos recebeu tanto apoio.

De acordo com o disposto na decisão 6-22-CP/23 do Tribunal Constitucional, com a vitória do Sim na consulta sobre o Yasuní, o Estado é obrigado a realizar uma retirada progressiva e ordenada de todas as atividades relacionadas à extração de petróleo em um prazo não superior a um ano, a contar da notificação dos resultados oficiais. O Estado também não poderá exercer ações destinadas a iniciar novas relações contratuais para continuar a exploração do bloco 43.

A consulta do Yasuní nos deixa várias lições:

- As batalhas são longas, difíceis e ocorrem em muitas escalas. Mas é possível construir uma consciência ecológica e social. E podemos derrotar as forças retrógradas que impõem o culto ao capitalismo e ao extrativismo, a ponta de lança da acumulação e da apropriação de recursos.

- Disputar o futuro é cuidar da vida e da natureza, que não é alheia nem distante. Ela engloba as florestas e as suas gentes, os rios e as cidades, os diversos seres e as relações nos nossos territórios. A natureza não é uma adversária, e sim uma aliada. Os desastres atuais e os que se projetam não são naturais, e sim uma construção feita por ações e inações globais e locais.

- As transições – já inevitáveis ​​– devem incorporar na agenda não só a interrupção das fronteiras extrativas, mas também a recuperação dos territórios sacrificados e sua restauração. Não é uma batalha apenas pelo futuro; é uma batalha para reconstruir o que foi danificado, para recuperar a capacidade de autorregeneração da natureza, a autodeterminação dos povos sobre os territórios e a autonomia na solução de problemas e conflitos.

Houve diversas tentativas de desobedecer ao mandato popular, bem como alegações sobre a impossibilidade de aplicá-lo. O ex-ministro da Energia do governo Guillermo Lasso adiantou-se ao dizer que “nunca na história do mundo um campo tão importante, que produz quase 60 mil barris por dia, foi paralisado”. No entanto, a empresa Petroecuador já apresentou o cronograma de fechamento, e planeja iniciá-lo em 31 de agosto de 2024. Isso nos dá tempo de nos prepararmos para esse processo e monitorá-lo no território.

O ano de 2024 será de grande atividade dentro do Yasuní. A Corte Interamericana de Direitos Humanos deve fazer uma visita relativa ao caso dos Povos em Isolamento Voluntário, antes de emitir sua decisão sobre a falta de proteção por parte do Estado. As pessoas que vivem no Yasuní chamam a atenção para o descumprimento dos direitos econômicos, sociais e culturais e para a dependência em relação à indústria petrolífera.

Há também pressão de grupos de poder ligados à indústria petrolífera que resistem a perder uma fonte de receita. São apresentados números – sem qualquer explicação – sobre os custos do desmantelamento, e muitos falam de novos cenários de corrupção. Não há informações sobre o que a indústria reconhece como “ativos e passivos” que precisarão ser retirados.

O ano de 2024 será de muita reflexão e propostas feitas por quem luta pela vida e pela natureza, certamente com a cumplicidade e a ajuda da própria natureza. Momentos para repensar a construção da utopia e reconstruir a autonomia e a soberania. Hora de fazer justiça nas áreas afetadas pelas atividades petrolíferas com a solidariedade de todo o país e, acima de tudo, de repensar, a partir de baixo, os verdadeiros custos e impactos dessas operações petrolíferas, desde a exploração até a retirada e a reparação integral.

Quando se fala de operações petrolíferas, sabemos que há uma série de estudos e procedimentos que as empresas tinham de submeter para obter suas licenças, e um desses estudos era o plano de abandono. O que não sabíamos é que “abandono” não significa afundar plataformas nem deixar poços abandonados.

Uma verdadeira reparação do Yasuni-ITT deve significar retirar tudo, para que permaneça como estava antes das atividades que nunca deveriam ter sido realizadas. A infraestrutura deve ser desmantelada, removida, os ecossistemas devem ser reabilitados, e se deve restaurar, reparar, recuperar a autonomia dos povos e da natureza.

Esperanza Martínez
Acción Ecológica

 

As contradições da conservação: O território do povo Ka’apor, na Amazônia brasileira

A parte oriental da Amazônia no Brasil tem as maiores taxas de desmatamento e degradação florestal do país. Contudo, nesse vasto território ainda existem grandes áreas em boas condições de proteção, que, como confirmam estudos científicos em vários locais do planeta, geralmente correspondem aos territórios de Povos Indígenas e/ou comunidades locais (1). Uma dessas áreas é a Terra Indígena Alto Turiaçu, onde vive o povo Ka’apor, que se estende por 530.524 hectares distribuídos em seis municípios do noroeste do Maranhão. Ali mora uma população de aproximadamente 2.600 pessoas distribuída em 20 comunidades, constituindo o maior território indígena da Amazônia Oriental e também a maior porção de floresta preservada daquela região.

Sobre o cuidado do território: Quem ensina a quem?

O cuidado com a floresta, chamado de conservação pela academia e outros setores sociais, baseia-se, entre outras coisas, em valores e relações profundas com os territórios: valores culturais, de uso, espirituais e políticos. Seus conhecimentos e suas práticas tradicionais lhes permitiram usar e cuidar do território ao mesmo tempo. Esses saberes e conceitos não são estáticos ou imutáveis; pelo contrário, evoluem com as culturas e se adaptam e respondem às necessidades emergentes. Dessa forma, por exemplo, o povo Ka’apor criou estratégias de monitoramento e autovigilância.

Não têm sido poucas as ameaças externas enfrentadas pelos Ka’apor. Ao longo dos anos, as invasões de seu território aumentaram, inclusive com funcionários públicos envolvidos em agressões, arrendamentos e uso de documentos falsos para apropriação indevida de território indígena. Diante disso, em 2012, parte significativa das lideranças das aldeias se uniu e passou a realizar ações de autovigilância. Eles estabeleceram pequenas comunidades nas estradas usadas pelos madeireiros, que mais tarde chamaram de áreas de proteção, ou ka’a usak ha, em seu idioma. Essa foi uma das experiências exitosas que neutralizou a agressão e invasão do território deles.

Em setembro de 2013, os indígenas criaram a primeira área de proteção no município de Centro Novo do Maranhão, onde decidiram, em dezembro daquele mesmo ano, retomar um sistema organizacional denominado Tuxa Ta Pame ou Conselho de Gestão Ka’apor. Trata-se de “uma forma de organização ancestral e coletiva do povo, que remonta e se referem aos antigos Tuxa, ou guerreiros, que deixaram marcas na história por terem lutado, dados a vida, mestres de saberes e cultura, estrategista em defesa do povo e da cultura”, explicaram os membros do Conselho em uma entrevista ao WRM. Nesse sistema não existem mandatários, chefes, caciques ou poder; as decisões não estão centradas em um líder, e sim na comunidade, em grupos e coletivos. “Todos são importantes e possuem um protagonismo na defesa [do território]. Quando tem uma ação de Autodefesa vai o grupo, ninguém diz quem ‘mandou’ comandou, mas todos que se sentiram ameaçados vão para o enfrentamento”, observaram.

Também foi estabelecido o Jupihu Katu Ha, acordo de convivência Ka’apor, criado com o intuito de contribuir para a unidade e exercer uma governança coletiva e responsável. A organização criada em torno do Tuxa Ta Pame se baseia em decisões consensuais, horizontais e participativas.

É necessário destacar a relevância que essas decisões acarretam em termos de autonomia e soberania. As formas próprias e inclusivas de governo e organização, distanciadas de modelos como as democracias representativas, permitem que diferentes setores dos povos indígenas tenham voz e participação. Exemplo disso é a guarda de autodefesa Ka’apor, formada por famílias, mulheres, idosos, crianças e até animais domésticos. Todos têm uma responsabilidade e uma tarefa a cumprir. Ou seja, o território é pensado, vivido, usufruído, apropriado e defendido por todos.

Com o passar do tempo e com o aumento das agressões e ameaças, as ações de defesa territorial se ampliaram. Foram implementadas novas formas de proteção com autovigilância, e foi feito um mapeamento participativo dos ecossistemas bioculturais Ka’apor. Inclusive, foram adotadas e implementadas agroflorestas sintrópicas, um sistema agrícola e produtivo criado há algumas décadas, que imita a floresta em sua organização, principalmente para reduzir insumos externos, acumular e descartar energia. E tudo isso junto com ações solidárias na educação e na saúde.

Porém, à medida que aumentavam as ações de autovigilância, também aumentavam os ataques e assassinatos, nos quais estavam envolvidos madeireiros, fazendeiros, caçadores, comerciantes e políticos locais. Nos últimos dez anos, mais de 50 pessoas foram agredidas, duas comunidades foram invadidas e ocorreram em torno de 15 assassinatos.

Apesar de tudo isso, a floresta pela qual o povo Ka’apor cuida está praticamente intacta. Recentemente, atores estrangeiros que desconhecem esse território chegaram supostamente para ensinar as pessoas a fazer o que elas vêm fazendo há séculos – proteger o seu território –. Esses atores defendem que seja implementado um projeto de REDD. Mas quem deve aprender sobre a relação com a floresta e como cuidar dela? Elas realmente vieram com a intenção de cuidar dela?

A chegada da proposta de REDD e os impactos previstos

No início de 2023, a empresa Wildlife Works e a ONG Forest Trends, ambas dos Estados Unidos, chegaram ao território com a proposta de implementar um projeto de REDD (Redução de Emissões causadas por Desmatamento e Degradação) para gerar e vender créditos de carbono. Elas chegaram sendo introduzidas por indígenas do estado do Pará.

Existe outra organização no território, a Associação Ka’apor Ta Hury do Rio Gurupi, que tem um cacique com quem a empresa e a ONG têm estabelecido maior comunicação. Essa associação, que não representa a totalidade do povo indígena, afirma concordar com o projeto, que supostamente poderia melhorar sua qualidade de vida e proporcionar recursos para complementar as atividades de proteção. Atualmente, há um memorando de entendimento assinado, que é denunciado pelo Tuxa Ta Pame porque nem a empresa nem a ONG os ouviram no processo que levou à assinatura.

Assim como acontece em muitos outros territórios do mundo, onde se concentram as florestas mais bem protegidas e que são objeto de disputa por projetos de créditos de carbono – povos indígenas e comunidades locais sofrem os impactos. Só com o anúncio já são geradas disputas e divisões internas.

Os membros do povo que discordam da proposta se opõem a ela porque o projeto de REDD mercantiliza o modo de vida deles e aumenta os conflitos internos. Eles sabem disso em primeira mão, pois já passaram por experiência semelhante com um projeto de comercialização de madeira seca em seu território entre 2006 e 2013. Naquele caso, sentiram-se enganados pelo próprio Estado, pelo governo federal e até pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI). Esses atores os envolveram no projeto de comercialização que acabou deixando disputas, morte e sofrimento, uma experiência que eles não querem repetir (2). Infelizmente, a presença de atores externos e sua proposta de projeto já está gerando conflitos e tem aprofundado as divisões entre o povo Ka’apor.

Pelo teor da situação, já foi feita denúncia ao Ministério Público Federal (MPF), segundo o qual qualquer processo que implique consulta prévia exige diálogo com os dois grupos, e o consenso deve refletir um entendimento que seja bom para ambos. (3).

Beto Borges, representante da Forest Trends, quando lhe foi perguntado qual seria a posição da ONG caso não houvesse consenso entre o povo Ka’apor, afirmou que o projeto não deveria continuar, o que reflete a relevância do consenso em uma decisão dessa importância. Mas a resposta do representante da Wildlife Works, Lider Sucre, é bastante diferente, pois não dá importância ao consenso, e sim destaca a decisão coletiva: “Nunca haverá unanimidade absoluta. Num processo comunitário, há sempre diferentes pontos de vista. No final do processo, acataremos a decisão do grupo, seja a favor ou contra” (4). Isso remete imediatamente ao que esse representante entende por decisão coletiva, uma vez que já existe uma decisão de parte do coletivo, que rejeita o projeto.

Como normalmente é o modus operandi de organizações como a Forest Trends e a Wildlife Works, elas começaram a disseminar informações tendenciosas sobre REDD, ao mesmo tempo em que informações muito relevantes não foram socializadas. Por exemplo, as irregularidades, as denúncias e os impactos de outros projetos REDD onde a Wildlife Works está envolvido, no Quênia, República Democrática de Congo e Camboja. (5)

Em novembro de 2023, o jornal The Guardian (6) publicou um relatório baseado na investigação realizada pela Comissão de Direitos Humanos do Quênia e pela ONG SOMO (7), que relata a denúncia contra funcionários de alto escalão da empresa Wildlife Works no projeto Kasigau, naquele país, acusados de abuso e assédio sexual cometidos durante mais de uma década. Homens ligados à empresa usavam sua posição para exigir sexo em troca de promoções e melhores tratamentos. A investigação levada a cabo por um escritório de advogados queniano encontrou provas de “comportamento profundamente inadequado e prejudicial” por parte de duas pessoas.

O próprio presidente da Wildlife Works, Mike Korchinsky, pediu desculpas pelo sofrimento causado e relatou que três pessoas foram suspensas, enfatizando que não se trata de um problema generalizado. A esse respeito, é necessário sublinhar que é muito comum minimizar o significado e dimensão dos abusos deste tipo de projeto (8) e insistir que os incidentes relatados se trata de casos isolados. No entanto, a repetição dos fatos ao longo do tempo sugere um caráter sistémico.

O problema fundamental por trás destas situações gravíssimas é que os projetos de REDD são incentivados e promovidos como uma intervenção exclusivamente positiva para comunidades e territórios, sem mencionar o histórico de impactos negativos. Ou seja, informações essenciais – completas, verdadeiras e imparciais – ficam escondidas das pessoas que se deparam com a tomada de decisão sobre um projeto em seu território.

Qual tem sido a resposta do Tuxa Ta Pame do povo Ka’apor?

Ao identificar a ameaça, o Tuxa Ta Pame determinou que era necessário buscar mais informações que permitissem uma compreensão abrangente do que é o mecanismo de REDD, como funciona, em que se baseia e quais seriam as suas implicações para a população e o território.

Após iniciarem seu próprio processo de investigação, os atores externos chegaram a apresentar uma explicação simplista e tendenciosa sobre o que é o REDD e a geração de créditos de carbono para financiar o projeto, que supostamente começaria a trazer benefícios simplesmente pela assinatura das listas de presença das reuniões. Mas o povo Ka’apor vem investigando, buscando outros pontos de vista e, sobretudo, conhecendo a experiência de outros povos com posição definida sobre o assunto, e assim chegou às suas próprias conclusões.

O conselho Tuxa Ta Pame e as comunidades organizadas em torno dele entendem o REDD como “um mecanismo capitalista de camuflar e manter o mundo poluído, os territórios ameaçados em sua autonomia. Por que transfere responsabilidade do poder público para o poder privado. Porque divide opiniões, monetariza os bens naturais. Sempre defendemos o território por que acreditamos que ele é a nossa vida. Nunca precisamos receber dinheiro para viver e proteger a floresta (9).

A partir dessa compreensão do que é o REDD, eles decidiram levar o tema para seus processos escolares e formativos, que acontecem em três núcleos de formação que orientam cinco centros de cultura e educação comunitária Ka’apor. O tema passou a fazer parte do conteúdo das atividades escolares e formativas, para as quais foram desenvolvidas cartilhas bilíngues de conhecimento. No final de 2023, já fazia sete meses que eles realizavam atividades de formação que deram origem à iniciativa de criar um protocolo comunitário autônomo Ka’apor, atualmente em construção.

O que é necessário, então, para que a floresta continue existindo?

É preciso garantir condições para que o povo Ka’apor permaneça no seu território, de forma segura e adequada, o que implica, entre outras coisas, respeitar suas próprias formas de organização política, de decisão e de gestão de seu território e seus meios de subsistência. Mais uma vez, deve-se ressaltar que projetos do tipo REDD que muitas vezes estão causando conflitos e impactos sem sequer estar aprovado ou em execução, são geralmente estabelecidos em áreas com bom estado de proteção de seus ecossistemas, como é o caso do Alto Turiaçu. Essas condições têm sido garantidas pelo povo Ka’apor, com base em seus conhecimentos, práticas, relacionamento com e de defesa do território, sem a necessidade de projetos externos nem de mecanismos de mercado que condicionem ou ordenem o que deve ser feito, segundo o que indicarem aqueles que promovem esses projetos e mecanismos.

Artigo elaborado pelo Secretariado do WRM, com base em entrevista realizada com membros do Conselho de Gestão Ka’apor Tuxa Ta Pame

 

(1) Porter-Bolland L. et al, 2012. Land use, cover change, deforestation, protected areas, community forestry, tenure rights, tropical forests. Forest ecology and management. Vol 268:6-17
(2) Video: Intercept Brasil, Empresa americana alimenta conflito indígena para lucrar com reparação ambiental, 2023.
(3) Article: Intercept Brasil, Empresa americana alimenta conflito indígena para lucrar com reparação ambiental, 2023.
(4) Idem 3
​(5) REDD-Minus: the rethoric and reality of the Mai-N´dombe  REDD+ Programme, 2020; Fortress conservation in Wildlife Alliance’s Southern Cardamom REDD+ Project: Evictions, violence, and burning people’s homes. “We’re proud of our work. The forest, the wildlife, you come to feel they’re yours”. 2021.
(6) The Guardian, Allegations of extensive sexual abuse at Kenyan offsetting project used by Shell and Netflix, November 2023.
(7) SOMO, Offsetting human rights. Sexual abuse and harassment at the Kasigau Corridor REDD+ Project in Kenya, November 2023.
(8) WRM, 15 anos de REDD: Um esquema corrompido em sua essência, abril de 2022.
(9) Entrevista com membros do Conselho de Gestão Ka’apor Tuxa Ta Pame.