Comunidades quilombolas recuperam terra e água após 40 anos de monocultura de eucalipto no Brasil

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O território quilombola (1) de Sapê do Norte, no estado de Espírito Santo, Brasil, ocupava uma extensa área nos atuais municípios de São Mateus e Conceição da Barra. Nessa área moravam cerca de 12 mil famílias. As que ficaram estão distribuídas em 34 comunidades reconhecidas pela Fundação Cultural Palmares, mais com muitas outras ainda em situações de invisibilidade sem a certidão de auto reconhecimento.

Essas comunidades foram expulsas de seus territórios tradicionais por um violento processo de colonização patrocinado pelo Estado e depois, na década de 1970, com a chegada da empresa Aracruz Celulose (depois conhecida como Fibria, e hoje Suzano) e a expansão de sua monocultura de eucaliptos em grande escala. Com o aval do Estado, e em nome do ‘desenvolvimento’ foram obrigadas a se deslocar para a periferia das cidades da região. Outras ficaram cercadas pelas plantações de eucaliptos.

Em meio às dificuldades diárias, os quilombolas continuam em luta contra as diversas formas de violência que têm enfrentado. Em 2007 iniciaram um processo coletivo para retomar suas águas, cultivos e vida comunitária. Hoje faz 15 anos que conseguiram retomar algumas de suas terras no Sapê do Norte. E a luta para retomar o que é seu, continua.

O Movimento Mundial pelas Florestas Tropicais (WRM) conversou com Flávia da comunidade Angelim II, mulher, mãe e ativista quilombola, e João de Angelim, também ativista quilombola, agroecologista e pesquisador quilombola. Suas palavras e sua experiência nas retomadas nos deixam muitas lições e reflexões sobre o difícil, mas fértil, processo de resistência das comunidades quilombolas no território de Sapê do Norte.

WRM: Como começou a história das retomadas em Sapê do Norte?

João: As comunidades quilombolas vêm, há anos, resistindo. Primeiro, com a chegada do eucalipto na região, através da luta pelo território, do Direito, com estudos e relatórios técnicos que garantiriam que a comunidade teria de volta uma parte de seu território que foi retirado abruptamente. Passaram-se anos e sem vermos nenhuma possibilidade. Chegamos à conclusão de que seria necessário dar alguns passos, forçar, apontar alguns lugares que mostrassem que ali aconteceu algo de errado quando a empresa de papel e celulose chegou e se apossou das terras.

Então, através da Comissão Quilombola, que tem representação de cada comunidade, juntamente com os outros movimentos sociais que tinham mais experiência de ocupação de terras, como é o caso do MST [Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra], tiveram as primeiras reuniões. E aí as retomadas começaram. A primeira foi em 2007, em Linharinho, com o propósito de recuperar a água, os alimentos e o solo. Hoje, essa  comunidade reivindica 3.500 hectares de terra.

Mas é importante considerar a retomada num contexto de reparação social e ambiental que nunca aconteceu. Quantas pessoas morreram por terem sido expulsas do Sapê do Norte? O Estado brasileiro tem que dar os títulos das comunidades quilombolas que são muito maiores do que as terras que estão em processo de retomada. Acho que essa é a verdadeira justiça. Não vai cobrir esses anos todos que passaram, mas possibilitará uma alternativa para a gente aqui no futuro. Tendo terra se tem liberdade. Não dá para permitir a Suzano mais no Sapê do Norte destruindo, nem nenhuma outra região.

Flávia: A primeira retomada no território do Sapê do Norte, na comunidade de Linharinho, foi muito difícil. Foi a primeira vez que nós decidimos e falamos assim: "olha, se o Estado não entrega, não devolve as nossas terras, nós vamos iniciar um processo de retomada".

Tivemos uma grande organização, com assessoria jurídica e apoio de parceiros. Mas, no final, terminamos debaixo de camburões, de cachorro, polícia... foi bem difícil. Nós resistimos até onde pudemos, e, graças a Deus, não perdemos ninguém. O Estado, em forma de polícia, veio com toda a força, armada, e muitos dos nossos foram presos.  

Depois disso nós ficamos um período sem fazer novas retomadas.

No ano 2010 aconteceu a retomada no São Domingos e Angelim I. Mais recentemente temos [retomadas] na bacia do Angelim, o Angelim 2, Angelim 3 e Angelim Disa – o Angelim é um rio que dá nome às comunidades. Mesmo vindo a polícia, hoje a gente consegue que não venha a força armada. Estamos mais preparados e temos uma rede de parceiros, que faz sua parte de apoio. Estamos conseguindo não ser criminalizados por fazer retomadas.

WRM: E como vocês se organizam antes e depois das retomadas?

Flávia: No Sapê do Norte, temos a Comissão Quilombola, com representantes de cada comunidade. Mensalmente temos reuniões. Quando a gente vai fazer uma retomada, tudo isso é pensado ali, com todas as comunidades de apoio. Nós fazemos uma lista de entidades que são apoiadoras e todas são informadas, e também a gente sempre pede assessoria jurídica.

Hoje, temos conhecimento sobre nossos direitos e conseguimos ter o mesmo diálogo que um advogado. Apesar disso, quando a gente chega lá na área, o preconceito policial não aceita que uma quilombola como eu faça esse diálogo. Eles sempre solicitam um advogado. Então muitas vezes o advogado está lá só por estar, mas quem faz mesmo o diálogo somos nós, quilombolas, que vivemos e sabemos qual é o nosso direito. Temos hoje alguns advogados que nos defendem muito bem, com unhas e dentes, que já estão num processo conosco há mais tempo. Eles estão sempre junto. A gente aciona movimentos, conselhos e secretaria de direitos humanos – apesar de não vermos muita ação da secretaria.

Assim todos os movimentos conseguem saber que vai haver determinada ação em tal comunidade, em tal momento, e aí fica todo mundo em alerta. Quem pode vir, vem; quem não pode, apoia nos seus lugares.

E também tem uma organização inicial no momento da retomada. Quem pode, leva muda, semente, o que puder contribuir para a gente ocupar realmente aquele espaço que está desocupado ou que está com eucalipto. E também a gente organiza placas de identificação do território para demarcar o espaço, com número de processo, com artigos da lei que nos dá o direito à terra. A retomada é um dia tenso, de muito trabalho, até a chegada da polícia. É claro, não existe retomada sem polícia. Aí começa o processo de negociação os quais, graças a Deus, estamos ganhando todos, e a polícia vai embora.

A comunidade que vai fazer a retomada, vai estar bem mobilizada e articulada para que tenham pessoas lá todos os dias, fazendo a vigília, trabalhando, para que eles não cheguem lá no outro dia e destruam tudo que foi feito no primeiro dia. A retomada de Angelim II aconteceu no dia 19 de dezembro de 2020.

João: A retomada em Linharinho teve uma repressão muito rápida. A gente não teve chance de fazer plantio. Passamos 3 anos pensando em uma estratégia de como fazer uma retomada que durasse mais tempo e fosse mais permanente. Então, em 2010, a retomada aconteceu em duas comunidades: São Domingos e Angelim I, um mês depois.

A estratégia em Angelim I foi a gente não ficar lá. A gente entrava, plantava e saía. O que aconteceu nessa primeira área foi que ela durou. Não teve interrupção da polícia, não teve isolamento da área, a gente conseguiu ir criando maneiras e manobras dentro do diálogo direto e de outras estratégias de resistência. Em São Domingos foi a mesma estratégia. Com o tempo fomos retirando os eucaliptos, fazendo plantios de agricultura de base alimentar, e mais adaptável diante da situação de solo.

WRM: Como foi que a água se tornou tão importante para sua luta?

João: Em uma das investigações realizadas pelo movimento quilombola aqui no Sapê do Norte em 2002, em torno de 200 córregos e alagados foram constatados desaparecidos na região. As pessoas não tinham água nem para beber muitas vezes.

Na retomada de Angelim I, fizemos uma ação próxima a uma área de alagado. Então, em 2014 e 2015, vivemos um período de muita seca. Voltamos para a área em que era o alagado, onde havia um recuo de eucaliptos, mas não  suficiente. O pessoal começou a retirar eucaliptos. A partir desse momento, a região ganhou outra forma. A chuva vinha, o solo ficou mais úmido e foi deixando as coisas acontecerem ali.

A partir dali fomos olhando o que estava acontecendo na região: onde as pessoas estavam e as nascentes foram regeneradas, a água foi ocupando os pontos que estavam secos. Um dos exemplos claros é o Córrego da Velha Antônia, que estava desaparecido e que já conseguimos recuperar uma parte. Isso tem sido gratificante. Os corpos hídricos têm encorpado mais água e volume significativo, feito pelas retomadas, com mais de quatrocentas famílias no entorno retirando eucalipto.

Vimos nessa pequena amostra como brotou água, o que não acontecia há muitos anos. Pessoas pescando. Num lugar onde não tinha peixe, começou a aparecer peixe. Você começa a navegar num lugar que não tinha água. Estamos falando de um córrego, mas tem centenas de córregos e rios impactados aqui na região. Imagina como era a fartura antes dos eucaliptos.
Ou seja, o grande problema aqui é a monocultura de eucalipto, que faz a gente não ter água; os rios não terem água.

A questão da água é imensurável; a gente tem tratado ela como principal elo entre todos aqui.

Flávia: Na verdade, tudo que tínhamos aqui no território era terra, água e mata. Toda a nossa sobrevivência era isso. Não tínhamos outro meio de viver. Então sempre costumamos falar que a mata é nossa mãe e o rio, nosso pai. Sempre fomos sustentados por eles. Eu conheci o rio ainda com bastante peixe, conseguia tirar algum cipó na mata, mas hoje a nossa maior dificuldade, em todo o território do Sapê do Norte, é a falta de água.

O Angelim 2 tinha 105 famílias, hoje tem 40. A partir do momento que chegaram, as empresas derrubaram todas as matas, e logo em seguida veio o plantio de eucalipto. A água e os peixes começaram a diminuir e a morrer por causa dos envenenamentos. As nascentes começaram a secar.

A monocultura de eucaliptos acaba com a água dos córregos e logo aquele espaço passa a ser utilizado para plantio de mais eucaliptos, chegando mais perto do olho da água até que a nascente seca totalmente. Também tem a questão das represas, que são feitas sempre acima das nossas comunidades, deixando os córregos abaixo sem água. Em períodos muito secos, eles torram, viram chão. O eucalipto, eles abastecem com carro-pipa. Eles vão nas represas, enchem os carros-pipa e vão molhando os eucaliptos, as mudas de eucalipto. É para isso que eles represam: para ter água com abundância e o ano todo.

Não temos água nem para beber, chega a ser desumano. Quando estou nos espaços em que o Estado está, representado pelos órgãos ambientais e até mesmo pelo governo atual, eu costumo falar que é vergonhoso deixar mais de mil famílias dentro de um território, sem água para beber.

A gente passa muito aperto por falta de água. Parte da comunidade é abastecida por carro-pipa que a prefeitura manda, mas eles não veem a alternativa de recuar [afastar] o eucalipto dos olhos d'água e diminuir o veneno (para a gente ter acesso à água limpa), em vez de ficar anos e anos nos abastecendo com carro-pipa.

Na comunidade do Angelim 1, Angelim 2 e Angelim 3, só de fazer as retomadas e recuar o eucalipto, não precisa nem fazer um trabalho de recuperação de nascente, até porque a gente não dá conta de recuperar todas em um espaço de tempo tão curto. A gente faz trabalhos de recuperações em algumas nascentes mais estratégicas para avançar o processo. Mas só de recuar [os eucaliptos], a água já começa a brotar. É uma coisa inacreditável. Nascentes que não tinham nada a um ano atrás, agora já tem água novamente.  Isso prova que o que seca as nossas nascentes é o eucalipto, embora eles digam que não, que o eucalipto é uma planta igual a qualquer outra. É? É! Mas é um monocultivo. Se tivesse diversidade, talvez não secasse como seca hoje.

WRM: Nesse processo de retomadas, foi importante o apoio de movimentos e organizações da região e de aliados internacionais?

Flávia: Muito importante. A gente sempre tem essa visão. Quando nós estamos sozinhos, a empresa vem com tudo para cima, eles são muito violentos. Como eles têm, como dizem, "um nome a zelar", acabam percebendo que nós não estamos sozinhos, aí querem manter o diálogo.

Hoje, eles têm outra forma até de conversar com a gente porque percebem que não estamos sozinhos. E quando vão para a mesa de diálogo, falam que os truculentos somos nós. É sempre assim. Mas o apoio das comunidades e de fora do Sapê do Norte é essencial. Estamos em um processo de manutenção de rede, com cada movimento. Precisamos dar a mão a todos para nunca estarmos sozinhos.

João: A luta quilombola já vem como uma luta conectada; de denúncias, de parceiros. A luta quilombola do Sapê do Norte é conhecida internacionalmente. O mais importante no fortalecimento dessa causa foram as alianças que tivemos a nível nacional e internacional, ainda que as retomadas sejam autogeridas, que têm o poder de decisão sobre o que fazer, o que vão plantar, o que vão comer. Tudo isso está acontecendo graças a esse bloco de defesa, a partir dos direitos humanos, da FASE (Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional) do Espírito Santo, que tem sido parceira sempre, dos movimentos sociais sem-terra, o MST, em todas as redes que está articulado, a Rede Alerta Contra o Deserto Verde, o WRM e tantos outros grupos parceiros nas redes da América Latina. Tentamos nos articular para sempre um estar sentindo a dor do outro, cientes do que está para acontecer em nossos territórios.

Tentaram nos separar, agora queremos nos aproximar, estar perto do rio e recuperar a mata que tiraram. A relação era tão íntima e tão valorosa que os lugares tinham nomes e eram respeitados simbolicamente. Hoje fala-se em proteção florestal, área de reserva legal, área de APP [Área de Preservação Permanente], mas isso não chega  nem se compara ao que eram as matas de verdade.

WRM: Quais foram os principais desafios nessa luta?

Flávia: Como mulher, há muitos desafios. A mulher é militante, é mãe, é dona de casa. No meu caso, tenho dois filhos, e foi muito mais desafiador porque eu estava recém-parida. Meu menino estava com quatro meses quando a gente precisava fazer a retomada. Eu sou uma liderança de frente, dependo do apoio do pessoal. Mas eles só têm confiança se eu estiver no meio deles. Eu tinha que estar lá, então estávamos, eu e meu menino, em todas as retomadas. É cansativo, a gente sofre. Não pela comunidade, porque a comunidade dá todo o apoio se a gente está com criança, todo mundo pega.

A gente sofre também o preconceito de ser mulher, preta, quilombola, agricultora, pobre. A empresa normalmente nos subestima demais. Eles acham que essa mulher não tem capacidade de entrar em um processo de negociação, então temos que ficar a todo instante provando quem é essa mulher, para que ele não subestime ou até mesmo tente ir com força para cima da comunidade. O preconceito está bem visível. No dia que aconteceu o empurrão no companheiro, perguntei para eles se eles imaginavam, caso tivesse sido ele empurrando vocês [os funcionários da Suzano], todos brancos, onde ele estaria agora. Estaria na cadeia, com certeza. Mas como foi um branco que empurrou um preto, não: eles pedem “desculpa” e “vamos manter o diálogo”. Será que eles iriam ter diálogo conosco nesse momento se fosse o contrário? É resistência sempre, olhar atento sempre.

Outra coisa que me deixa muito preocupada são as ameaças. Estou sempre com medo aqui no território. Também pelo movimento de direitos humanos, toda a coordenação tem um cuidado especial [comigo], questão de vida. Aqui não tem sinal de telefone, só tenho internet quando estou dentro de casa. Se eu sair, ninguém vai saber onde estou. Sempre tem esse cuidado de não sair sozinha, não sair à noite, não deixar os filhos sozinhos em casa. É bem desafiador ter que estudar,saio à noite para a faculdade, e como voltar para casa se não posso andar à noite? É todo um processo com o qual ainda estou tentando lidar.

João: A empresa sempre busca uma artimanha. A cada retomada, aparecia a empresa com um projeto ou com programas desviando a atenção. Isso aconteceu muito, esse esfriamento da luta. Eles acabavam, no mesmo período, cooptando quilombolas, lideranças, empregando, trazendo alguns programas, dizendo que seria melhor para a comunidade.

O que aconteceu com algumas retomadas foi que, assim que as áreas eram consolidadas, chegavam pessoas não-quilombolas e, por um meio ou outro, acabavam entrando. E, muitas vezes, por não compreenderem a luta de território e a luta quilombola, acabam criando um diálogo torto e confundindo o processo. A gente teve muita dificuldade com isso. Recentemente, em 2020, a gente sofreu um ataque massivo de invasão no território das comunidades, de grupos organizados não-quilombolas. Foi necessário a gente tomar uma postura, porque eles vinham denominando as localidades e fazendo a nossa narrativa, como se fosse a gente, e denominando localidades como áreas de retomadas. Um pouco perigoso. A gente teve que tomar o cuidado de separar quais são as retomadas que têm a participação e um pouco da filosofia do que pensamos como movimento. Essas pessoas acabaram tendo que sair.

Manter as retomadas também tem sido desafiador por conta da invisibilidade na política pública. Se a gente está numa condição de autogestão, nós não teremos apoio de política pública, não teremos apoio de quase ninguém. Temos tratado com os agricultores, com os quilombolas que estão no campo quase como um esforço direto deles. E isso tem sido o grande diferencial, está possibilitando “tirar leite de pedra”, de onde se dizia que não saía. É possível voltar a água onde não tem, ter comida onde não tinha, ter floresta, ter mais bicho onde já teve muito.

Outro desafio é a capacidade de rebrote dos eucaliptos: é gigante. Em dez anos, temos locais que ainda não conseguiram expulsar os resíduos. Esses mais de 40 anos sob uso abusivo de maquinário pesado, de centenas de quilos de glifosato, toneladas jogadas nas cabeceiras, nas águas, nos deixaram numa condição de solo muito ruim. Precisamos regenerar, recuperar [o solo]. Dessa maneira, a agrofloresta sempre fez parte da vida quilombola. Mas para regenerar você precisa entender o lugar, buscar a ancestralidade, o que está ligado com o meio e o que não está. Saber o que plantar, saber o que deixar nascer.

WRM: Quais conselhos vocês dariam a outros povos que estão enfrentando um processo semelhante de retomada da terra ou da água?

Flávia: Aqui no Brasil, penso que a gente não consegue terra se não fizer retomada. Então, a primeira coisa: é preciso fazer retomada. Mas, para fazer retomada, é preciso ter o mínimo de organização para não acabar tentando e não conseguindo. Precisamos estar conectados, em rede, mesmo que seja fora do estado, fora do país. É muito importante ter apoio em rede, contato com o Ministério Público Federal, com a Defensoria do Estado, com os conselhos de direitos humanos, porque são as instituições do Estado, com as quais conseguimos ter algum apoio legal. Também é muito importante ter cuidado com a vida dos nossos defensores.

E nunca desistir, né? Porque se a gente desiste  de fazer qualquer processo de luta por direito, de uma forma ou de outra, a gente vai morrer. Se a gente não for defensor, a gente vai ser fuzilado porque é preto, ou vai morrer de fome porque não tem o que comer, ou vai morrer de frio porque não tem onde morar. A gente tem que ficar sempre ligado e tentando se manter vivo. A prioridade é vida, não desistir e se conectar em rede. Apoio é muito importante.

João: Não parar de plantar, não parar de acreditar, continuar. Em muitos momentos haverá dificuldade, mas onde tiver uma nascente que precisa de ajuda, não se pode ficar no discurso. É preciso haver a ação. Não dá para esperar uma tomada de decisão da caneta do juiz, porque ele não sente na pele como quem está lá embaixo sendo contaminado.

As retomadas são uma realidade hoje, e assim como fomos ousados em fazer, vamos ser ousados em manter. Esse tempo que passou permitiu a reflexão e que a gente entendesse mais a conjuntura. Não é fácil compreender um isolamento de mais de 40 anos sem acesso à terra. E quando se abre essa possibilidade, é normal que venham também as crises e as confusões. As retomadas têm nos ensinado isso e eu fico muito grato por hoje ter uma compreensão melhor desse grande plano que deu certo. E que está mostrando que o caminho é por aí mesmo.

Acho que o mais importante foi ter quebrado o silêncio que existia em meio ao eucalipto sufocando as comunidades, ali ilhadas. Quebrou-se um silêncio em que a comunidade não podia adentrar ou atravessar uma parte de uma área de eucalipto para ir em um córrego sem um pouco de medo da vigilância – que ainda se tem, mas que tinha um controle muito maior. Então, quebra-se esse silêncio e voltam as relações comunitárias.

Eu vejo as terras dos povos de todo o mundo, dos nossos irmãos indígenas, das comunidades tribais de cada país, que se unam e busquem forças em conjunto. Temos momentos difíceis, mas nosso grande inimigo são os grandes projetos que vêm para ocupar terras, águas; para matar nossos povos. Então, primeiro de tudo, é união e ação local. Todos os dias, se possível.


(1) Comunidades quilombolas são aquelas formadas por descendentes de pessoas africanas que foram submetidas à escravidão e que fugiram para iniciar os quilombos no Brasil Colonial e Imperial.