Genocídio e isolamento

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Foto de Pablo Cingolani. Menina do povo indígena yuqui, da Amazônia boliviana, um povo que vivia em isolamento e foi contatado pelas missões religiosas entre 1967 e 1991. Hoje em dia, vive em extrema vulnerabilidade, produto precisamente desses contatos forçados.

Um século atrás, José Santos Machicado anotava, em um conto intitulado Tres días en el bosque: “Não é admissível que os toromonas se abstivessem de lançar os alaridos e gritos que têm por costume ao tomar uma presa e surpreender o inimigo, e que esse gritos não chegassem a distância tão curta do povo”(1). A densidade das imagens que este parágrafo transmite pinta toda a mentalidade de uma época: quando o positivismo imperava nas cabeças, os fuzis “winchesters” estavam sempre ao alcance da mão e a selva amazônica era sacudida por uma ambição sem freios por obter riquezas: eram os anos do auge capitalista na extração de borracha (1880-1914).

Atualmente, existe toda uma visão romântica e idealista sobre esse período tão dramático e, ao mesmo tempo, pouco investigado da história contemporânea, que marcou as regiões de floresta de vários países sul-americanos.

Embora se possa comprovar a influência da extração de látex na integração territorial dos embrionários estados-nação encostados na Cordilheira dos Andes – que, como contrapartida, também precipitou a consolidação do colosso brasileiro – isso não pode nem deve ofuscar o enorme e terrível custo social dessa atividade econômica.

Em defesa da dignidade dos sobreviventes e de seus herdeiros atuais, e em homenagem à memória dos que foram massacrados por ações violentas ou pela própria extenuação nos trabalhos a que foram submetidos e condenados, é necessário afirmar que o que aconteceu na Amazônia continental no final do século XIX e princípio do XX foi claramente um genocídio.

Os nomes desses “pioneiros” e “industriais” que são lembrados em províncias, povoados, notas de dinheiro e monumentos não são mais do que o testemunho de uma grave omissão histórica: a do reconhecimento pleno das culturas amazônicas que habitavam originalmente esses territórios e da revisão dessa leitura sobre o passado, que nada mais é do que a perpetuação das ofensas sofridas. Na Amazônia continental – cuja economia segue sendo, em grande medida, feudal ou de intercâmbio colonial – persiste um vergonhoso colonialismo interno de parte de grupos oligárquicos e/ou empresariais.

Pando – ex-presidente da Bolívia – descreveu toda uma crença em seu Viaje a la región de la goma elástica(1894): “Não é um empreendimento fácil o de atacá-los em suas casas e os perseguir na floresta, e apenas com ajuda de cachorros e a perícia de homens habituados à montanha (...) é que se pode surpreendê-los e dominá-los (...)”. O uso de cães nos remete à conquista espanhola do Caribe e dos Andes e ao terror que causavam entre os nativos e às humilhações que lhes foram impostas. Pura e simples caça de índios.

O livro também inclui menções às “façanhas” protagonizadas por alguns personagens: “O senhor Mouton, cuja intrepidez foi posta à prova outras vezes (...) conseguiu alcançar e surpreender os selvagens (guarayos), exterminando quase que totalmente sua tribo, já que apenas duas crianças conseguiram fugir”.

Muitos estrangeiros – em meio a esse clima em que dominava a lei do mais forte – se destacaram por seu sadismo. Em 1914, o naturalista sueco Erland Nordenskiöld coletou histórias terríveis. Um francês havia tomado crianças como prisioneiras em uma aldeia indígena, e acampado com seu pessoal em uma margem do curso alto do rio Madidi. “As crianças gritavam e não havia maneira de fazer com que se calassem. Com medo de que atraíssem os índios, pegou cada uma pelas pernas e lhes rebentou a cabeça contra o chão”. E acrescenta: “Perto dos galpões de extração de borracha do rio Beni, há vários chamas que foram vendidos pelos caçadores de escravos”. Chama guarayos são duas denominações para a mesma etnia: os Ese Ejja.

A ideologia que levou a cabo o genocídio já soa degradante ao se ler: “O selvagem é uma fera que, quando fica brava, ataca sem distinção, e à fera é preciso caçar (...) isso acontece no rio Madera com as tribos de parintintins e caripunas, há ataques todos os anos, obrigando os industriais a persegui-los e abatê-los heroicamente”. Isso está escrito na Gaceta del Norte, jornal fundado por Vaca Diez, e está datado do ano de 1888, em seu barracão Orton, em pleno auge dessa orgia inclemente e opressiva que tanto faz lembrar o Congo de O coração das trevas, de Joseph Conrad, um livro clássico que retrata o horror vivido pelos povos da África negra frente ao mesmo pesadelo: a irrupção do capitalismo nas selvas.

Diante dessa situação desesperadora, as tribos da Amazônia buscaram refúgio no interior das florestas, afastando-se dos grandes rios por onde penetravam os invasores, escapando de uma morte certa e buscando garantir sua liberdade, sua independência e seu modo de vida tradicional.

O próprio Nordenskiöld já mencionou o dilema ético do contacto com a “civilização” nesses anos de desprezo absoluto pelo outro. Aconteceu que um índio chama chegou em busca de seu filho que estava trabalhando em Cavinas, perto da foz do já mencionado rio Madidi. Pensando no menino, e se melhor seria retornar com ele, anotou: “Nas barracas da borracha, ele vai ser mais um peão, terá que trabalhar toda a sua vida para outros, recebendo um pagamento minúsculo, e comida e roupa. Aprenderá a se embebedar. Na selva, às vezes há fome e às vezes, abundância. Nunca se sentirá a salvo dos brancos e talvez, nem mesmo de outros índios. Talvez tenha que viver como um animal acossado, mas será dono se si mesmo”. Diante das duas opções, Nordenskiöld responde sem vacilar: “Se eu fosse o chama, levaria o menino”.

A profecia do sueco se cumpriu com folga: a aculturação sofrida pelas etnias amazônicas ao longo de todo o século XX é, talvez, a forma mais triste de desaparição: no silêncio e na solidão de uma cultura dominante que os nega.

O isolamento salvou poucos povos indígenas da morte violenta ou da assimilação invisível, mas implacável. Eles, os que fugiram e se isolaram, vivem até hoje ocultos em lugares específicos da floresta. O mundo – ou melhor, o mundo representado pela ONU e alguns poucos governos, como o próprio governo boliviano — aprovou leis, resoluções e medidas para protegê-los, para que os últimos povos indígenas em estado de isolamento não desaparecessem. É necessário, urgente e prioritário que essas leis se cumpram e se façam cumprir, já que são apenas alguns os que tomaram conhecimento, e poucos os que compreendem. E são ainda muito menos os que sentem a profundidade desse drama humano.

Pablo Cingolani, Rio Abajo, Bolívia, julho de 2013, pablocingolani@yahoo.com.ar

Notas:
(1) De Cuentos Bolivianos, B. Herder, Friburgo de Brisgovia, Alemanha, 1908. No pequeno e delicado volume se esclarece que o Sr. Herder é “livreiro-editor pontifício”. Essa joia bibliográfica que resgata a pena precisa desse antiliberal raivoso que foi José Santos Machicado foi cedida a mim por Fernando Arispe.
(2) As citações de Pando e da Gaceta del Norte são de: María del Pilar Gamarra Téllez: Orígenes históricos de la goma elástica en Bolivia. La colonización de la Amazonía y el primer auge gomero, 1870- 1910. Em: Historia, UMSA, La Paz, 1990, No. 20