Peru: Contra a devastação petrolífera do território e dos direitos indígenas, o sentido dos rios

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A água não é apenas água. Muitas vezes, a importância da água é reduzida apenas ao seu valor comercial e a seu uso como recurso natural, ou seja, seu uso econômico. Essa visão reducionista coisifica diferentes escopos, relações e possibilidades vitais da água. Além disso, considera a natureza como um depósito inesgotável, um eterno provedor de bens, uma natureza maquinal, uma coisa isolada, sem vida.

Os Povos Indígenas, por sua vez, nos oferecem diferentes visões, modos e horizontes para estabelecer relações mais interconectadas, saudáveis ​​e adequadas à natureza e à água.

A sábia Irma Tuesta, do povo Awajún, nos diz: “Nosso território está ligado a tudo, pois tudo tem vida para nós, tudo tem mãe: a água, o ar, a montanha, a terra, as pedras, a serra, as aves, os animais, as plantas”. (1) Para ela, a natureza é uma unidade vital, um todo vivo feito de vários laços de vidas. Nesse caso, a palavra “vida” deve ser entendida não apenas em seu sentido de “força” ou “energia” nos seres orgânicos, mas também como uma atividade contínua, como uma trajetória vivida, como história, como uma experiência de viver a vida.

“O território é a nossa vida, e tudo o que diz respeito ao território, nossos conhecimentos, nossos saberes, nós vamos contando nessa transmissão aos nossos filhos por meio de histórias, poesias, canções, e protegendo o nosso território”, continua Irma.

As últimas palavras esclarecem ainda mais o conceito. O território (ou seja, os rios e a floresta como um todo) é a própria vida dos povos indígenas, é o espaço onde são produzidos e contidos seus saberes, sua memória, sua existência. Sua vida é o seu território. O apu (líder indígena) Alfonso López, do povo Kukama, presidente da federação ACODECOSPAT, que representa 63 comunidades Kukama das bacias dos rios Marañón, Ucayali e Amazonas, no Peru, diz: “O território está dentro de nós, nós somos o território, e você deixa de ser indígena quando se desconecta do seu território, quando já não tem mais relação com o seu espaço natural, deixa de se sentir indígena quando deixa de sentir o poder da sua natureza, o poder dos espíritos das plantas que o alimentam [...] mas como é possível ver se tudo está doente, como se pode ver claramente o futuro se estão nos adoecendo, se estão nos destruindo, e apenas para buscar recursos econômicos?” (2)

A norma não abrange a plenitude, mas tem matéria

Existem diferentes organismos multilaterais voltados a garantir o acesso à água como um direito humano e proteger os territórios dos povos indígenas. A ONU reconhece o acesso à água como um direito humano desde 2010. Por sua vez, a Convenção 169 da OIT, de caráter constitucional no Peru, indica que os Estados devem adotar medidas especiais ou estabelecer salvaguardas para proteger e preservar os territórios que os povos indígenas habitam, com o objetivo de garantir suas culturas, seus conhecimentos, sua capacidade produtiva, entre outros. Também existe um grande número de outras referências e jurisprudências internacionais com relação a esse assunto.

No Peru, desde 2017, o direito de acesso à água é reconhecido constitucionalmente, por meio da Lei 50.588. Essa norma prioriza apenas o consumo humano de água em detrimento de outros usos, mas faz do acesso à água o ponto de partida para outros direitos, como “a dignidade, o livre desenvolvimento da personalidade, o meio ambiente, o trabalho, a identidade, entre outros”. (3)

Mas o Estado peruano descumpre sua própria regra e faz muito pouco para reverter a violação do direito. De acordo com o Ministério da Cultura, (4) 54% da população indígena da Amazônia não têm acesso à água pelo sistema da rede pública. Embora o cálculo nos pareça conservador, o relatório do ministério indica que há uma grande diferença em relação à população que fala espanhol, onde apenas 11% não dispõem do serviço.

Por sua vez, a Defensoria Pública do Peru publicou um relatório em 2018 (5) sobre a situação da saúde das comunidades indígenas dos povos Quechua, Achuar, Kichwa e Kukama, das bacias dos rios Pastaza, Corrientes, Tigre e Marañón, respectivamente. O documento diz: “Em relação ao acesso à água potável para consumo humano, a situação é mais extrema. Nos distritos de Andoas, Pastaza, Urarinas, Trompeteros e Parinari, entre 97% e 99% dos domicílios pesquisados consomem água não tratada. Já nos distritos de Tigre e Nauta, esse número chega, no mínimo, a 66% e 82%”. Em seu relatório, a Defensoria reconhece que essa situação grave expõe a população a condições que aumentam o risco de desenvolver problemas de saúde.

A atenção dispensada pela Defensoria aos distritos mencionados não é arbitrária. Eles abrigam rios e comunidades indígenas afetadas por atividades petrolíferas desde o início da década de 1970, nos blocos denominados 192 (antigo bloco 1AB) e 8, bem como no Oleoduto Norperuano, que atravessa o norte da Amazônia e as montanhas andinas até chegar a um porto no litoral norte para ser comercializado.

 

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Quase uma centena de comunidades nas áreas afetadas na Amazônia e suas federações indígenas FEDIQUEP, FECONACOR, OPIKAFPE e ACODECOSPAT travam uma luta unificada e organizada há onze anos. (6) Essa luta, articulada na plataforma PUINAMUDT (Povos Indígenas Amazônicos Unidos em Defesa de seus Territórios), vem configurando uma agenda política e técnica que tem servido para obrigar o Estado a tomar medidas especiais de enfrentamento da crise de contaminação por petróleo e da violação de direitos na área.

Apesar de terem sido dados alguns passos para enfrentar o problema, as ações tomadas pelas autoridades têm sido insuficientes, com implementação muito acidentada e, em várias ocasiões, conflitos recorrentes. Junto a esse processo, nem a atividade petrolífera nem seus impactos negativos cessaram. Esses danos se acumulam e se espalham sem ser contidos.

De 2000 a 2015, o Bloco 192 (em operação desde a década de 1970) foi concedido à empresa Pluspetrol e, desde então, à Frontera Energy del Perú S. A, cujo contrato expirou em fevereiro de 2021. Atualmente, o Bloco está aguardando o reinício das operações. O Bloco 8 (também em funcionamento desde a década de 1970) é operado pela Pluspetrol desde 1996, e a concessão vai até 2024. A sede da Pluspetrol está oficialmente estabelecida na Holanda, o que permitiu à empresa evitar impostos sobre os lucros que obtém com a extração de petróleo no Peru e em outros lugares. A Frontera Energy Corp. é uma empresa pública canadense com operações em vários países da América do Sul.

Círculo vicioso: uma cadeia de violações, abusos e danos

Há algumas semanas, em 7 de junho de 2022, foi relatado um vazamento de óleo na comunidade indígena do povo Urarina, chamada La Petrolera. Essa comunidade também está localizada na região de Loreto, no norte da Amazônia peruana, às margens do rio Patoyacu, afluente do Chambira, que por sua vez é afluente do Marañón. Para chegar lá, é preciso viajar pelo rio por pelo menos dois dias em um barco de alto rendimento. De canoa (embarcação tradicional), a viagem pode levar de três a quatro dias.

As autoridades comunitárias que relataram a descoberta não souberam estimar a quantidade de óleo derramado, mas exigiram uma ação imediata de limpeza por parte da Pluspetrol, operadora do Bloco 8, uma importante área petrolífera no Peru.

Duas semanas depois, no domingo, 18 de junho, a falta de uma intervenção a tempo da Pluspetrol fez com que o petróleo avançasse até as águas do Patoyacu, fonte de água, pesca e lazer para a comunidade. “Faz vários dias que a gente vem dizendo que eles recolham o petróleo, e eles não recolhem. Fomos nós que avisamos as autoridades sobre o vazamento, e é o nosso território que está sendo afetado”, disse o apu da comunidade, Robles Pisco, aos meios de comunicação. (7) As fotos compartilhadas pela comunidade e que circularam nas redes também mostravam peixes afetados pelo vazamento.

No início de julho, o vazamento ainda não tinha recebido a devida atenção. As denúncias e reclamações da comunidade Urarina continuaram. (8) Até hoje, a comunidade continua exigindo que o Estado declare a zona em emergência, devido ao enfrentamento urgente que é necessário. “Todos nós estamos com dor de cabeça, vômito, o próprio pessoal da empresa também está doente, eles mesmos disseram isso”, destacou recentemente Robles Pisco. Mas as autoridades e a empresa continuam em silêncio e ausentes, o Estado apenas enviou delegações para monitorar a área.

A tragédia que ocorreu na comunidade de La Petrolera não é um caso isolado. E não é a primeira vez que ocorre um vazamento de petróleo no território de comunidades indígenas. De acordo com informações coletadas pela plataforma PUINAMUDT e pelo Centro Amazônico de Antropologia e Aplicação Prática (CAAAP), no Bloco 8, as autoridades ambientais registraram até 181 vazamentos entre 1998 e 2020, e também contabilizam mais de 670 locais impactados, que precisam de recuperação ambiental. Apesar de a Pluspetrol ter paralisado suas operações desde 2020, (9) os vazamentos continuam e se acumulam, prejudicando o território e a vida nas comunidades.

Caso semelhante ocorre nas áreas florestais do Bloco 192, também localizado na região de Loreto. De acordo com as autoridades ambientais, existem mais de 1.119 locais impactados nesse bloco. (10) Somente entre março de 2021 e abril de 2022, foram registrados 35 vazamentos de óleo. Um triste exemplo do que se vive na região é oferecido pela comunidade Kichwa 12 de Octubre, onde só em 2022 foram registrados dois vazamentos. As comunidades indígenas atingidas por esse bloco denunciaram o problema perante o Poder Judiciário. (11)

Graças às denúncias feitas nos últimos dez anos por organizações indígenas como FEDIQUEP, FECONACOR, OPIKAFPE e ACODECOSPAT, ficou evidente a grave crise ambiental e social que os territórios indígenas estão vivenciando devido aos vazamentos de óleo na Amazônia peruana, os quais afetam, na maioria casos, diversos mananciais que são fonte de vida para as florestas e suas populações indígenas.

Zúñiga e León sistematizaram informações (12) sobre vazamentos de óleo na Amazônia peruana e identificaram que as autoridades ambientais registraram até 474 vazamentos a partir de instalações petrolíferas entre 2000 e 2019. Por outro lado, também se identificou que o total acumulado de água despejada pela produção de petróleo em rios, solos e pântanos do norte da Amazônia peruana entre 1974 e 2009 chegou a 7,09 bilhões de barris, que continham milhares de toneladas de diferentes compostos químicos altamente tóxicos. (13) Cabe especificar que o Estado peruano possui informações oficiais desde, pelo menos, o início da década de 1980, quando foram identificados os primeiros registros de chumbo em sedimentos, águas e espécies animais consumidas como alimento nas comunidades indígenas Achuar da bacia do Rio Corrientes. (14)

Navegando na longa jornada em direção à justiça e reparação

A situação crítica nesses territórios tem uma longa história e não é novidade para as autoridades do Peru. No entanto, o atual governo não atua de forma decisiva, nem busca ações ou políticas efetivas para a reparação ou as garantias necessárias dos direitos dos povos indígenas. “Com todas essas evidências, nós dissemos: chega! Os nossos próprios governos estão nos matando, não estão respeitando os nossos direitos”, disse recentemente o apu Aurelio Chino Dahua, presidente da FEDIQUEP, em um evento com o Relator da ONU sobre substâncias tóxicas e direitos humanos na Colômbia. (15)

Somente após constantes mobilizações sociais, denúncias coletivas, processos judiciais e inúmeras reuniões, o Estado peruano se digna a tomar algumas medidas para enfrentar o problema. Diante da ineficácia dos governos de turno, são as comunidades e suas organizações que propõem a agenda. Em 2015, as organizações reunidas na plataforma PUINAMUDT assinaram acordos que propõem ações, orçamentos e prazos concretos para o enfrentamento dos problemas de meio ambiente, saúde, acesso à água potável, entre outros. Essa agenda foi assumida pelo Estado por meio de compromisso assinado no mesmo ano.

Como parte dessa agenda, foram realizados estudos que determinaram altos níveis de contaminação da água e do solo. Em 2016, o Ministério da Saúde realizou o primeiro estudo toxicológico e epidemiológico na área, publicado em 2019. (16) O estudo mostrou que 57% da amostra total de adultos e 49% das amostras de crianças ultrapassaram os níveis de chumbo, segundo o padrão internacional. Por sua vez, quase um terço das pessoas amostradas apresentam níveis de arsênio (28%) e mercúrio (26%) acima do limite permitido no Peru.

Um estudo posterior realizado na região, denominado Análise da Situação de Saúde (ASIS), indica que “o acesso ao serviço público de água potável nas comunidades das quatro bacias e do rio Chambira está em condição crítica. […] 56% informaram consumir água do rio, apesar da percepção de que está poluída”.

Até agora, o Estado não cumpriu os acordos firmados, entre eles os relativos à água, descumprindo também suas obrigações adquiridas em tratados internacionais e na Constituição Política do Peru.

Um relatório a ser publicado em breve pela plataforma PUINAMUDT (17) identificou que, quando o Estado implementou ações vinculadas a esse compromisso (instalação de sistemas de água ou saneamento nas comunidades, por exemplo), isso foi feito “sem levar em conta a autonomia e a institucionalidade indígenas, e ignorando suas próprias diretrizes e metodologias para a implementação, segundo as quais deveriam ser consideradas as diferenças culturais e as experiências dos povos indígenas, bem como as características específicas dos territórios”. Em alguns casos, inclusive, houve corrupção grave em estruturas públicas para a execução de projetos ou as autoridades comunais foram criminalizadas injustificadamente.

Até hoje, nenhum dos compromissos assinados em 2015 foi cumprido integralmente.

Apesar do cenário crítico, as comunidades e organizações indígenas mantêm seu compromisso de defender a vida, o território e seus direitos. A luta é contra a corrente. Em 15 de julho de 2022, o presidente da federação FEDIQUEP, em reunião com a Alta Comissária da ONU para os Direitos Humanos, Michelle Bachelet, denunciou o abandono, por parte do Estado, dos cuidados especiais em um Plano de Saúde que atenderia mais de 500 comunidades indígenas, mas que o governo do presidente Pedro Castillo não quer aprovar há mais de sete meses.

Esse é o baixo grau de comprometimento do atual governo com os direitos dos Povos Indígenas – um governo que se autoproclama de esquerda. Fica claro que essa posição é a mesma de governos anteriores, abertamente neoliberais. Diante disso, as organizações e os Povos Indígenas mantêm suas lanças erguidas. Essa é a situação e o sentido dos rios que orientam a defesa da vida na Amazônia no Peru.

Renato Pita Zilbert,
Comunicador, Plataforma PUINAMUDT
Julho de 2022


(1) Various authors. (2020) ¿How do we understand our rights? Webinar: Series of talks on the rights of indigenous peoples. Visión Amazonía, Perú Equidad, Caaap, Coordinadora Nacional de Derechos Humanos, IWGIA, NICFI. Lima, Perú
(2) Alfonso López, in the Public Forum “30 years after Convention 169, What is the situation of indigenous peoples in Peru?” (2019). Ruiz de Montoya University, Lima. Transcription by David Díaz Ávalos
(3) Cacñahuaray, Ruth. El acceso al agua potable en las comunidades indígenas del Perú en el marco de estado de emergencia nacional. Revista Eurolatinoamericana de Derecho Administrativo, vol. 7, núm. 2, pp. 261-277, 2020. Universidad Nacional del Litoral
(4) Peru, Ministry of Culture, Indicators – Water service, 2018.

(5) Defensoría del Pueblo. 2018. «Salud de los pueblos indígenas amazónicos y explotación petrolera en los lotes 192 y 8: ¿Se cumplen los acuerdos en el Perú?»
(6) A plataforma se chama Pueblos Indígenas Amazónicos Unidos en Defensa de la Amazonía (PUINAMUDT):  www.observatoriopetrolero.org
The participating indigenous federations are: Indigenous Quechua Federation of the Pastaza River (FEDIQUEP); The Federation of Native Communities of the Corrientes river basin (FECONACOR); The Organization of Kichwa Amazonian Indigenous of the Peru-Ecuador Border (OPIKAFPE); and the Cocama Association for the Development and Conservation of San Pablo de Tipishca (ACODECOSPAT)
(7) PUINAMUDT, Triste día del padre: Pluspetrol no atiende a tiempo derrame de petróleo y empieza a contaminar quebrada Patoyacu, junio 2022.
(8) PUINAMUDT, Alerta de emergencia ambiental y sanitaria en comunidades urarinas por derrame de petróleo en el Lote 8, julio 2022.
(9) Desde o final de 2020, a Pluspetrol paralisou suas ações no Peru. As organizações indígenas denunciaram que a empresa pretende abandonar o Bloco 8 (seu contrato expira em 2024), em descumprimento de suas obrigações ambientais, como fez no Bloco 1AB. Atualmente, a empresa e o Estado peruano estão em processo de arbitragem devido a uma liquidação societária pretendida pela Pluspetrol.
(10) PUINAMUDT, Ministerio de Energía y Minas desaprueba por segunda vez propuesta de Pluspetrol para remediación del Lote 1AB, febrero 2019.
(11) PUINAMUDT, Federaciones indígenas denuncian penalmente a Perupetro por derrames sin atención en el Lote 192, abril 2022.
(12) La sombra del Petróleo (2020).
(13) Yusta-García, Raúl. 2019. Contaminación de Aguas y Suelos por actividades de extracción de petróleo en la Amazonía Norte Peruana. Tese de doutorado. ICTA-UAB (Barcelona, Espanha). O autor também aponta que o volume identificado na Amazônia peruana é 15,7 vezes maior do que a PW descarregada no Equador de 1971 a 1992 pela petrolífera Chevron-Texaco (p. 81).
(14) Maco, J., R. Pezo, J. Cánepa. 1985. Effects of Environmental Contamination from Oil Activity.
(15) Apu Aurelio Chino Dahua, no Foro Regional da ONU sobre Empresas e Direitos Humanos para América Latina e Caribe (julho de 2022, em Bogotá, Colômbia)
(16) PUINAMUDT, Ministra de Salud entrega informe final de estudio sobre metales pesados a dirigentes indígenas de Loreto y se compromete a implementar un plan de atención, julio 2019,
(17) O relatório está na fase de edição final e foi realizado pelo antropólogo Diego Navarro, a pedido das federações da plataforma //da PUINAMUDT.