Por que estamos na prisão? Uma luta de mulheres contra a injustiça e a dominação na Índia

Era seis da manhã. Eu e outras companheiras tínhamos que nos preparar para uma manifestação e uma reunião às dez horas, contra a nova Portaria de Aquisição de Terras, promulgada pela terceira vez consecutiva pelo partido que está no poder na Índia. Eu ouvi jipes chegando. Ouvi o som das botas dos policiais quando eles desceram dos jipes. Em seguida, uma batida forte na porta na sala ao lado, onde dois companheiros dormiam. Eu sabia que a polícia tinha vindo nos prender. Enquanto isso, os companheiros abriram a porta. Muitos policiais entraram, apressados. Eu saí do meu quarto e pedi para esperarem eu trocar de roupa. Alguns policiais entraram no quarto, bateram em uma das outras companheiras Adivasis e olharam para a outra, que parecia paralisada, em sua posição meio vestida, após o banho. Eles apreenderam todos os telefones que encontraram. Enquanto isso, os policiais chamaram a proprietária e gritaram com ela por alugar esses dois quartos, e mandaram desocupar o espaço. Fui levada por uns 15 a 20 oficiais e forçada a me sentar num jipe. A outra companheira Adivasi foi obrigada a se sentar em outro jipe. O nosso comboio partiu, cerca de seis jipes e um caminhão carregado de policiais armados! Nós fomos levados para a Superintendência de Polícia, na periferia da cidade. Eu e a outra companheira fomos enviadas a dois quartos diferentes e os companheiros homens foram mantidos do lado de fora. Então, como esperado, nos levaram ao tribunal local, que foi esvaziado e isolado, e fomos mandadas a um lugar a 80 km dali, em prisão preventiva de 14 dias, junto com cinco outros companheiros que já estavam lá há mais de dois meses, na prisão de Mirzapur.

O que nós fizemos para que a polícia aparecer às seis da manhã e nos prender com uma força armada tão grande, como se fôssemos terroristas? Há uma razão imediata e uma raiva antiga da polícia e da administração contra aqueles de nós que lutam pelos direitos dos povos.

Razão imediata: o movimento contra a represa ilegal de Kanhar e a aquisição ilegal de terras na área.

O Projeto de Irrigação de Kanhar é um projeto interestadual localizado a jusante, na confluência dos rios Pagan e Kanhar, perto da aldeia de Sugawan, no tehsil (divisão administrativa) de Dudhi, distrito de Sonebhadra, Uttar Pradesh. O projeto propõe uma represa de terra de 3.003 km de extensão, com uma altura máxima de 39,90 metros a partir do nível mais profundo do leito, que pode ser aumentada a 52,90 metros se for ligada ao reservatório de Rihand. O projeto prevê a submersão de 4.131,5 hectares, que incluem partes de Uttar Pradesh, Chhattisgarh e Jharkhand, habitadas principalmente por comunidades tribais. O projeto afirma que irá fornecer irrigação aos tehsils de Dudhi e Robertsganj, no distrito de Sonbhadra, por meio de canais à esquerda e à direita, em ambos os lados da represa. No entanto, a região já viu o que aconteceu com a represa de Rihand – que foi construída sobre o rio Rihand no início da década de 1960 e desalojou milhares de famílias de mais de 100 aldeias: as águas estão sendo usadas ​​para atender às necessidades de empresas de energia. A área de comando em terra arável do projeto é de 47.302 hectares. O projeto impõe enormes ameaças não apenas à ecologia e ao meio ambiente, mas também a milhares de famílias tribais que vivem ali há centenas de anos.

Depois da aprovação inicial pela Comissão Central de Águas, em setembro de 1976, foram feitas algumas obras de alicerces, mas o projeto foi interrompido logo em seguida devido a problemas interestaduais, falta de verbas e fortes protestos de comunidades tribais da região. O trabalho de construção foi completamente abandonado a partir de 1989-90. Houve tentativas de reinaugurar o projeto em janeiro de 2011 e em novembro de 2012, mas nenhum trabalho pode ser feito até dezembro de 2014, quando a construção começou, sob forte presença policial e paramilitar. As estradas foram bloqueadas e a entrada ao local do projeto foi fechada 1,5 km à frente do canteiro de obras. Residentes locais Adivasis e Dalits, que haviam se oposto ao projeto, manifestaram sua oposição ainda mais intensamente.

O movimento, que era pouco consistente, ganhou impulso com a decisão de se alinhar à União de Povos da Floresta, em uma reunião pública, em dezembro de 2014. Começaram a acontecer piquetes permanentes, um pouco afastados do canteiro de obras. Ativistas entraram com ações no Tribunal Nacional Verde (ambiental), para questionar o projeto em termos de danos ambientais que ele estaria causando, e a falta de licenciamento ambiental e florestal adequado. O Tribunal emitiu uma ordem de suspensão e pediu às autoridades do projeto da barragem para apresentar as licenças ambientais pertinentes.

A ordem do Tribunal observou, entre outras questões, que o projeto está fadado a resultar em uma enorme perda de florestas, com um grande número de árvores já cortadas, apesar da forte oposição das comunidades tribais, pois o corte é uma grave violação das disposições da Lei (de Conservação) Florestal de 1980. A divisão florestal de Renukoot, do distrito de Sonbhadra, é uma das mais ricas e mais densas áreas florestais de Uttar Pradesh. É conhecida por sua rica biodiversidade, suas plantas medicinais e seu patrimônio tradicional e cultural na forma de conhecimento tribal, que tem atraído muita atenção científica e econômica.

No entanto, descumprindo a ordem de suspensão do Tribunal, a construção continuou. A raiva das pessoas aumentou. Em 14 de abril, a população local decidiu organizar um protesto perto do canteiro de obras. À medida que iam se reunindo, as pessoas recebiam tiros – um Adivasi sofreu um ferimento a bala e vários outros ficaram feridos – mas elas resistiram, com quantidades cada vez maiores de participantes sentando-se no chão da área. Isso fez com que a força policial se retirasse e, assim, o protesto continuou. Mais uma vez, em 18 de julho, as pessoas foram brutalmente agredidas com cassetetes e tiros. Foram emitidos mandados de prisão contra vários ativistas, incluindo eu e outras líderes comunitárias Adivasis. Também foram emitidas ordens proibindo a minha entrada no distrito.

A administração do distrito local e a polícia, de mãos dadas com a máfia local da terra e o lobby dos construtores industriais, decidiram pisotear os desejos das pessoas e expulsá-las à força de suas aldeias e terras ancestrais. Eles não se importam com o diálogo, não têm qualquer consideração com o sistema judicial ou a constituição do país. A área é feudo deles e eles o governam como querem – pela força. Não se importam com o fato de esse projeto não ter licenças ambientais ou florestais adequadas e prejudicar diretamente cerca de 10.000 famílias tribais, que perderão suas terras ancestrais para sempre. Não lhes importa que os Gram Sabhas (Conselhos de Aldeia) das aldeias afetadas tenham aprovado um consenso contrário ao projeto e apresentado ao governo estadual. Não lhes importa a perda de florestas densas: o documento do projeto Kanhar mostra que 4.439,294 hectares de terra categorizados como “florestas e outros” serão afetados – milhões de árvores serão cortadas pelo projeto, que causaria um impacto significativo sobre o meio ambiente, os animais selvagens e os meios de subsistência dos povos tribais. Eles não se preocupam com a saúde do rio Kanhar, afluente de um dos principais rios da região – o Sone, que, por sua vez, é um importante afluente da via mais vital da Índia, o rio Ganges. Eles não se importam com a perda de milhões de árvores, que contribuirá para a mudança climática, porque o carbono das florestas será lançado na atmosfera. As pessoas da região não querem esse projeto. Elas dizem: “Nós não queremos usinas; na verdade, não precisamos delas. São as indústrias que precisam de água, e é por elas que eles querem que nós abramos mão de nossas terras ancestrais férteis e destruamos as florestas que temos protegido há séculos, e coloquemos nossos filhos em perigo”.

A antiga raiva contra nós: a luta pelos direitos das pessoas e contra a injustiça

É preciso entender que a raiva da administração local, da polícia, da aristocracia rural e da máfia se deve ao trabalho de mais de uma década e meia, no distrito de Sonbhadra, entre os povos Adivasis e Dalits da região, por seus direitos à terra, à floresta, à água e aos recursos naturais.

O distrito de Sonbhadra, escondido no canto sudeste do estado de Uttar Pradesh, é a “capital energética do país” – produzindo mais de 11.000 MW de eletricidade, e milhões de toneladas de alumínio e cimento. Embora a área seja bastante industrializada, as pessoas são muito pobres. O país inteiro está se beneficiando com a região, que já foi cheia de florestas e colinas, mas ela própria e seu povo não têm se beneficiado; pelo contrário, foram empobrecidos. A “capital energética da Índia” não fornece eletricidade para as pessoas da região. E a terra da qual as pessoas foram arrancadas para a industrialização só fez empobrecer os residentes locais.

É no contexto desse progresso industrial, mas com empobrecimento sem precedentes dos Dalits e Adivasis da região, que o Sindicato dos Trabalhadores da Floresta de Toda a Índia – que então não era um sindicato, e sim parte do Comitê de Campanha pela Reforma Agrária e Direitos Trabalhistas de Uttar Pradesh e, depois, integrante do Fórum Nacional de Povos da Floresta e Trabalhadores Florestais (NFFPFW, na sigla em inglês), que estavam defendendo ativamente os direitos dos povos da floresta – me enviou para trabalhar com as pessoas desse distrito e conscientizá-las sobre seus direitos à terra, às florestas e aos recursos naturais. Isso foi em 1998-1999. O trabalho do Fórum Nacional em Sonbhadra reforçou as discussões que então evoluíam em torno dos direitos dos trabalhadores florestais e das comunidades da floresta. As lutas das comunidades que vivem na floresta para afirmar seu controle soberano sobre essas florestas e outros recursos naturais, travada desde os primeiros dias do domínio britânico até a Índia pós-independência, são provavelmente as mais antigas e as mais coerentes.

Mas essas lutas, até agora, tinham sido marginalizadas pelos círculos políticos e acadêmicos. Na Índia pós-colonial, os discursos florestais e ambientais dominantes quase sempre lidam e descrevem as comunidades florestais como uma ameaça ao meio ambiente e as consideram responsáveis ​​pela destruição dos recursos naturais. Assim, a identidade dos trabalhadores florestais nunca foi realmente reconhecida, nem no discurso da política, nem do movimento trabalhista. Mas a nossa luta estava mudando esse cenário, empoderando as comunidades Adivasis e Dalits locais para que fossem conscientes de seus direitos, se manifestassem e, após a aprovação da Lei de Direitos Florestais, os exigissem. Grandes extensões de terra foram recuperadas por Adivasis e Dalits na região, e eles as estão cultivando coletivamente. Este tem sido um desafio direto à classe proprietária de terras e à casta superior da região.

Outra dimensão é que a luta tem sido liderada principalmente por mulheres – o que incomodou e irritou o estado patriarcal e a aristocracia rural. Por isso, é uma luta de classes com uma forte dimensão de gênero. Esse tipo de repressão – nos mandar para a prisão, nos ameaçar – só irá fortalecer o movimento. Viva a vitória das lutas dos povos em todo o mundo por seus direitos a terra, água, florestas e dignidade do trabalho.

Roma, romasnb@gmail.com
All India Union of Forest Working People (AIUFWP)

Ver comunicado à imprensa de 15 de julho de 2015, “Diga não à violência do Estado contra os protestos democráticos”, uma declaração conjunta dos movimentos floresta e Adivasis na Índia, em inglês: http://palashscape.blogspot.nl/2015/07/press-release-say-no-to-state-violence.html