Acordos comerciais, agronegócio e crise climática

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As negociações sobre o clima em Paris, em dezembro deste ano, são consideradas uma última oportunidade para os governos do mundo se comprometerem com metas vinculantes que possam deter nossa marcha rumo ao caos climático. Porém, na contagem regressiva para Paris, muitos desses mesmos governos assinaram ou estão pressionando por uma série de ambiciosos acordos comerciais e de investimento que impediriam as medidas necessárias para enfrentar a mudança climática.

O que sabemos desses acordos até agora, a partir dos poucos textos que vazaram das negociações secretas, é que eles vão resultar em mais produção, comércio e consumo de combustíveis fósseis, e serão usados ​​para reverter medidas populares que têm impacto sobre os lucros das indústrias poluentes (1).

O que não se falou muito é sobre a forma como as disposições desses acordos sobre alimentação e agricultura afetarão nosso clima. Mas a questão é vital, porque os alimentos e a agricultura têm um peso enorme nas mudanças climáticas (2). Identificamos sete principais formas pelas quais os componentes alimentar e agrícola dos atuais acordos comerciais e de investimento farão com a crise climática piore.

1. Mais produção, comércio e consumo de alimentos que são grandes emissores de gases do efeito estufa

Em termos de produção agrícola, a carne e os laticínios são os que mais contribuem para a mudança climática. Apenas 11% de toda a carne produzida são comercializados internacionalmente, mas, em termos globais, estima-se que a produção e o consumo de carne aumentem em 17% até 2024, e simplesmente tenham dobrado em 2050 (3). Espera-se que o aumento no comércio cumpra um papel nesse crescimento, e parte dele virá dos mais novos acordos comerciais, o que poderia alterar bastante a atual dinâmica do comércio de carne (4). É claro que não se pode prever quanto o comércio e o consumo vão crescer como resultado direto desses acordos, mas os cortes tarifários e padrões menos rígidos devem levar a um aumento da oferta e, portanto, do consumo nos países importadores. Afinal de contas, é isso que buscam os lobbies da indústria. Os mercados também devem crescer para determinadas empresas do agronegócio e seus investidores, devido ao afrouxamento de normas de segurança e leis de rotulagem de alimentos como resultado desses novos acordos (5).

2. Promovendo a agricultura industrial para exportação em detrimento de fazendas e sistemas alimentares locais

Desde muito tempo, a expansão dos mercados para o frango e o leite em pó europeus é um ponto central das agendas de liberalização comercial da UE, como bem sabem os agricultores e os pecuaristas africanos. Eles têm se mobilizado para conter o dumpingde frango altamente subsidiado e o excesso de laticínios da Europa há anos. Essas lutas estão cada vez mais ligadas às mudanças climáticas. A produção industrial de aves, afinal de contas, é uma importante fonte de emissões de gases do efeito estufa. Os galetos, que são criados por sua carne, produzem sete vezes mais emissões do que aves de quintal. E as galinhas poedeiras, criadas em função dos ovos, produzem quatro vezes mais (6). O consumo de frango está aumentando em muitos países, porque é uma carne de baixo custo; portanto, o comércio mundial de aves deve aumentar. Todo esse comércio vem de granjas industriais, que emitem mais do que as operações de fundo de quintal ou de pequena escala.

3. Estimular supermercados globais e alimentos altamente processados

Os maiores nomes do varejo de alimentos pretendem crescer na Ásia, bem como na África e na América Latina, através dos vários acordos comerciais novos que estão sendo feitos hoje em dia. A expansão dos supermercados globais traz consigo a expansão da produção, do comércio e do consumo de alimentos processados. Por exemplo, sob o NAFTA, o consumo de alimentos processados ​​subiu muito no México, trazendo consigo graves problemas de saúde pública, e o setor de varejo do país foi tomado por grandes cadeias globais (7).

Os alimentos processados ​​– produzidos por Mondelez, Nestlé, Pepsico, Danone, Unilever e similares – são importantes emissores de gases do efeito de estufa, não só por toda a energia usada na embalagem, no processamento e no transporte, mas também por causa das emissões geradas nas fazendas e do desmatamento que vem com a expansão das plantações. Os alimentos processados ​​são produzidos com as matérias-primas mais baratas que as empresas podem obter em todo o mundo. Uma embalagem de comida padrão de supermercado pode conter leite em pó da Nova Zelândia, milho dos Estados Unidos, açúcar do Brasil, soja da Argentina e óleo de dendê da Indonésia – alimentos altos na escala de emissões.

4. Fraude climática: a terceirização de emissões

Os acordos comerciais favorecem a produção de alimentos em países com baixo custo e/ou produção fortemente subsidiada, com níveis elevados de emissões. Esses países têm poderosos lobbies de agricultura industrial, e as receitas estrangeiras costumam depender muito das exportações agrícolas. É muito improvável que esses países venham a implementar qualquer medida para reduzir emissões que possa prejudicar a competitividade dos seus produtos agrícolas. Já vemos esses países avançando com suas empresas para afastar quaisquer esforços internacionais que possam promover cortes de emissões significativos na agricultura, por exemplo, através da Aliança Global para a Agricultura Inteligente para o Clima.

O país importador provavelmente não vai se responsabilizar pelas emissões importadas com os alimentos. Mesmo que um governo importador tentasse medidas para reduzir as importações de produtos que emitem muitos gases do efeito estufa, ele poderiaser contestado por aplicar restrições comerciais desleais dentro dos novos acordos.

5. Mais agrocombustíveis

Os agrocombustíveis são outra forma de energia poluente que, junto com os combustíveis fósseis, pode receber um impulso dos mais recentes acordos comerciais, principalmente quando os capítulos relativos a investimentos dos acordos comerciais tentam “nivelar o campo de jogo” para os investidores estrangeiros ao estabelecer regras sobre “tratamento nacional” e “a nação mais privilegiada”, que facilitam em muito o acesso à terra para a produção de agrocombustíveis. As políticas climáticas da União Europeia reforçaram a enorme concentração de terras na África para a produção de etanol para os mercados europeus.

6. A promoção das economias locais de alimentos prejudicada

Programas como “compre produtos nacionais” ou “compre produtos locais” costumam ser considerados discriminatórios e distorções do comércio, segundo a chamada doutrina do livre comércio. A Organização Mundial do Comércio pouco fez para desencorajar essas iniciativas, mas os novos acordos comerciais bilaterais e regionais poderiam ir muito mais longe. Defensores e praticantes da soberania alimentar veem isso como uma ameaça potencial às economias locais de alimentos que vêm sendo meticulosamente construindo ao longo das últimas décadas (por exemplo, iniciativas de conselho de política alimentar para apoiar o uso de alimentos locais em serviços públicos, como escolas e hospitais) (8). Qualquer ação para ilegalizar o “tornar-se local” (go local) ou “usar o que é local” no setor de alimentos automaticamente resultará em aumento da desestabilização do clima (9). O mesmo se pode dizer de iniciativas de apoio a compras “verdes” ou programas para exigir que se compre de empresas de pequeno e médio porte, em nome de mitigação das mudanças climáticas.

7. Medidas de segurança alimentar ilegalizadas

Em 2013, alguns governos tentaram aprovar uma regra da OMC segundo a qual as compras públicas de produtos alimentares em tempos de crise seriam consideradas uma forma de subsídios agrícolas que distorcem o comércio. Muitos governos compram produtos agrícolas de agricultores para estabilizar os mercados, garantem preços e administram estoques ou sistemas de distribuição de acordo com o interesse público. Os estragos causados ​​pelas mudanças climáticas em um mundo de desregulamentação e concentração empresarial tornam os choques alimentares mais comuns e mais ameaçadores. Isso significa que essas medidas básicas de segurança alimentar e fortes programas de compras públicas são cada vez mais necessários.

É hora de parar de desestabilizar o clima!

Os padrões de consumo de alimentos estão mudando. A dieta ocidental está se difundindo, principalmente no Sul global, trazendo consigo problemas de saúde, mas também o aumento da pressão climática. Traders de commodities, empresas de agronegócio, redes de varejo, grupos de private equity e outros tipos de corporações que financiam e administram o sistema industrial de alimentos têm um grande interesse em expandir os negócios nesses mesmos mercados, e os acordos comerciais são uma grande ferramenta para isso.

É só fazer as contas. Se quisermos enfrentar a mudança climática, temos que reduzir o consumo de alguns alimentos e isso significa também reduzir a produção e o comércio. Felizmente, é bastante possível, mas exige uma redução estrutural da comida e do varejo com produção em grande escala, e daqueles que os financiam e lucram com eles. No lugar deles, fazendas, unidades de processamento e mercados de pequeno e médio porte, apoiados por compras e financiamento públicos, poderiam funcionar melhor. É necessário um empurrão e a unificação das diferentes lutas em torno das mudanças climáticas com as lutas pela soberania alimentar e contra os acordos comerciais impulsionados pelas empresas.

GRAIN, http://grain.org/
Acesse a publicação em Espanhol, Inglês e Francês em:
https://www.grain.org/article/entries/5317-trade-deals-boosting-climate-change-the-food-factor

  1. Ver relatórios a ser publicados do Corporate Europe Observatory (CEO),http://corporateeurope.org, bem como relatórios anteriores de Sierra Club, a rede Friends of the Earth, CEO e outros, compilados em http://www.bilaterals.org/?+-climate-+http://www.bilaterals.org/?+-climate-+; Peter Rossman, “Against the Trans-Pacific Partnership,” Jacobin, 13 de maio de 2015:https://www.jacobinmag.com/2015/05/trans-pacific-partnership-obama-fast-track-nafta/.
  2. Ver La Via Campesina e GRAIN, “Food sovereignty: 5 steps to cool the planet and feed its people”, 5 de dezembro de 2014, https://www.grain.org/e/5102.
  3. Ver OECD-FAO, Agricultural Outlook 2015, 1o de julho de 2015,http://dx.doi.org/10.1787/agr_outlook-2015-10-en. O comércio de frutos do mar já dobrou nos últimos cinco anos e eles se tornaram a proteína mais comercializada. Para mais informações, ver Rabobank, http://rabobank-food-agribusiness-research.pr.co/98495-seafood-a-myriad-of-globally-traded-aquatic-products.
  4. Ver o capítulo “ampliado” sobre carne em OECD-FAO, op. cit.
  5. Ver GRAIN, “Food safety in the EU-US trade agreement: going outside the box”,10 de dezembro 2013, https://www.grain.org/e/4846 e FoEE, GRAIN, IATP e outros, “EU-US trade deal threatens food safety”, 5 de fevereiro de 2015,https://www.grain.org/e/5129
  6. Os dados são do relatório da FAO, Global Livestock Environmental Assessment(GLEAM), “Greenhouse gas emissions from pig and chicken supply chains”, 2013,http://www.fao.org/docrep/018/i3460e/i3460e.pdf
  7. Ver GRAIN, “Free trade and Mexico’s junk food epidemic”, 2 de março de  2015,https://www.grain.org/e/5170
  8. Ver Karen Hansen-Kuhn, “Local economies on the table: TTIP procurement update”, IATP, 13 de novembro de, http://www.iatp.org/documents/local-economies-on-the-table
  9. Nem todas as iniciativas “go local” no setor de alimentos são melhores para o clima. Mas muitas o são.