Uma reflexão vinda da África: dominar o medo para construir movimentos mais fortes

Imagem
Camarões. Foto: Palm Watch Africa.

Entrevista com o ativista e defensor dos direitos humanos Nasako Besingi. Ele organizou comunidades para protestar contra as plantações de dendê da empresa de agronegócio Herakles Farm. Devido a esse envolvimento, ele já foi vítima de ataques físicos, intimidação e criminalização por parte da Herakles Farm e do governo.

O Secretariado do WRM entrevistou o ativista socioambiental e defensor dos direitos humanos Nasako Besingi. Ele é diretor da organização camaronesa Struggle to Economize the Future Environment (SEFE), que apoia as lutas das comunidades locais pelos direitos à terra, principalmente contra as plantações de dendezeiros. Nasako organizou comunidades para protestar contra o estabelecimento de plantações de dendê da empresa de agronegócio Herakles Farm, com sede nos Estados Unidos. Devido a esse envolvimento, ele já foi vítima de ataques físicos, intimidação e criminalização por parte da Herakles Farm e do governo. O ativista condenou veementemente as violações dos direitos humanos relacionadas às atuais crises nas regiões anglófonas de Camarões.

Muitas vezes se ouve que as comunidades da África não podem realmente defender suas terras nem reivindicar sua devolução por parte de empresas que recebem concessões do governo nacional, pois, de acordo com a lei nacional, “toda a terra pertence ao Estado”. Qual é a sua opinião sobre isso?

Em primeiro lugar, o que é um Estado? Um Estado consiste em quatro elementos principais: população, território, governo e soberania. Portanto, a frase “toda a terra pertence ao Estado” não implica que a terra seja de propriedade do governo, e sim de toda a população que vive no território de um Estado, incluindo as pessoas que estão no governo. A maioria da população de um Estado reside em comunidades, onde luta diariamente para defender o território para si. Por outro lado, uma descrição melhor de governo seria uma agência na qual a VONTADE do Estado é formulada, expressa e realizada, e através da qual políticas comuns são estabelecidas e reguladas em termos de desenvolvimento político, econômico e social. Cumprir essas tarefas não se traduz em direitos de propriedade do governo sobre terras e recursos naturais do Estado.

É errado qualquer governo reivindicar propriedade sobre a terra, descartando os direitos das comunidades à terra. Na verdade, o problema das regulamentações fundiárias da África é que elas foram elaboradas com a ajuda de senhores coloniais que, sem o consentimento da população, entregaram o território a presidentes não eleitos pela população, e sim, frequentemente, escolhidos a dedo pelos colonizadores para servir a seus interesses de longo prazo. Além disso, a noção de que “toda a terra pertence ao Estado” não dá ao governo a posse da terra e o direito de dispor dela unilateralmente, apenas de legislar e regular sobre questões fundiárias, considerando e respeitando os interesses da comunidade.

É dever dos governos proporcionar felicidade, liberdade e paz à população, bem como proteger as propriedades. Além disso, esses governos ratificaram instrumentos internacionais em nome dos Estados, a fim de fortalecer os direitos da população. Como o direito internacional prevalece sobre o direito nacional, é evidente que a ratificação desses instrumentos internacionais se sobrepõe às decisões unilaterais dos governos sobre a terra, sob a falsa interpretação de que “toda a terra pertence ao Estado”, sem o consentimento do elemento fundamental de um Estado (as pessoas), cuja sobrevivência e existência cotidianas dependem da terra.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, a Carta das Nações Unidas, a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, bem como outros instrumentos internacionais tornam ilegal a cessão unilateral de terras por parte desses governos para fins de desenvolvimento sem o consentimento das comunidades. Recentemente, o Tribunal Penal Internacional (TPI) considerou a apropriação e concentração de terra e os abusos dos direitos das comunidades como crimes que chegam ao nível da jurisprudência internacional, e prometeu processar os infratores (governos e grandes empresas).

Desde que eu me envolvi em movimentos e organizações de direitos territoriais comunitários em Camarões e outros países, nenhuma comunidade que conheci aceitou a ideia de que a terra é propriedade do governo. Elas afirmam categoricamente que a terra pertence a elas e é uma herança ancestral. Nenhuma das comunidades com as quais eu trabalhei concorda com a presença de grandes multinacionais em suas terras, e alegam que as empresas foram estabelecidas usando força coercitiva.

Na sua experiência, quais são os aspectos/estratégias importantes para construir e fortalecer movimentos e lutas comunitárias no contexto africano?

As lutas e os movimentos comunitários na África ainda estão em estágios iniciais por causa da sombria história de escravidão, colonização forçada e administração semicolonial pós-independência no continente, sem oportunidades democráticas e de direitos humanos. Hoje a situação parece muito diferente, com democracia parcial e uso discricionário dos direitos humanos, principalmente devido às condições impostas pelos países industrializados.

O aspecto mais importante da construção de movimentos fortes na África é vencer o medo e a ignorância deliberadamente incutidos na população pelas administrações coloniais e pós-coloniais. Identificar as preocupações das comunidades também é essencial, enquanto se criam manuais educativos para tomada de consciência que reflitam sobre essas preocupações. Outro aspecto importante é fortalecer a capacidade de ativistas comunitários e organizações da sociedade civil de conhecer seus direitos e saber como defendê-los de acordo com seus meios de subsistência cotidianos. Considerando que os movimentos duradouros são aqueles construídos a partir da base e não de fora, a forte resistência só pode ocorrer vinculada às preocupações da comunidade.

Daqui para frente, as estratégias são: estabelecer uma forte coalizão de organizações e comunidades da sociedade civil africana com o objetivo de compartilhar experiências e informações com frequência, planejar e executar atividades em torno dos direitos das comunidades à terra, apoiar o ativismo baseado na defesa de causas e no combate às violações, disponibilizar outros tipos de materiais educativos para as comunidades e simplificar manuais e vídeos informativos que exponham as estratégias e táticas usadas pelas corporações para se infiltrar e tomar as terras ancestrais das comunidades.

E quais são os maiores desafios?

No contexto da África, há muitos desafios que precisam de abordagens diferentes para que os movimentos de resistência sejam bem-sucedidos. Um obstáculo importante é a falta de conhecimento das comunidades sobre seus direitos à terra e sobre como defender seus territórios ancestrais, supostamente devido à sua incapacidade de confrontar as forças crescentes que conspiram para se apropriar das terras, capitaneadas por grandes empresas e governos. Outro problema é a má governança caracterizada pela corrupção endêmica e a pobreza que visa a manter, mais uma vez, a comunidade submetida à vontade do governo. Também há obstáculos políticos estabelecidos pelos governos para reduzir o espaço de ONGs, organizações da sociedade civil e movimentos sociais, através de intimidação e criminalização. Condições rígidas e oportunidades limitadas de financiamento são outros desafios que os movimentos precisam enfrentar.

Na sua opinião, a solidariedade internacional é importante para as lutas das comunidades?

A solidariedade internacional continua sendo a única opção boa para impedir a insensível e inconsequente apropriação de terras insensível. É importante para reduzir a influência de empresas e governos que explora a ignorância das comunidades e toma as terras comunais à força.

Adquirir mais conhecimentos sobre os direitos se traduzirá facilmente em resistências mais fortes contra o roubo de terras. Um primeiro passo importante é o esclarecimento através do conhecimento compartilhado na base, onde as violações ocorrem, e nos países de onde vêm o financiamento e os consumidores.

Os grupos locais podem não ser capazes de enfrentar sozinhos a intimidação, a violência e os processos judiciais forjados e prolongados de que são vítimas por parte de governos e grandes corporações. Eles não têm muita experiência com ações diretas não violentas, que consistem em ter as informações corretas para confrontar os infratores.

Que tipo de solidariedade internacional você acha que funcionou melhor até agora?

Até agora, no contexto africano, me ocorre a campanha feita em Camarões contra a Herakles Farms, uma empresa com sede nos Estados Unidos, que pretendia derrubar 73 mil hectares de florestas virgens para seu projeto de plantações de dendê em meio a quatro áreas protegidas, incluindo o Parque Nacional de Korup. A forte reação contra a Herakles Farms veio de comunidades locais, ONGs locais e internacionais, pesquisadores, cientistas, acadêmicos, entre outros. Uma imensa pressão se acumulou tanto em nível local, onde as operações estavam ocorrendo, quanto em nível internacional, onde as empresas obtinham fundos para estabelecer o projeto. Em 2013, o presidente de Camarões assinou uma série de decretos reduzindo a concessão de 73.000 hectares para 19.843 hectares, mas isso não estava em sintonia com as aspirações das comunidades, que continuaram resistindo e ecoando a reivindicação original: “nenhuma plantação em nossa terra”. A empresa abandonou suas operações nas áreas de concessão de Mundemba e Toko em 2015.

Além disso, iniciativas colaborativas intercontinentais, como a que envolve GRAIN/WRM, em parceria com ONGs e organizações comunitárias locais na África, sob orientação da Aliança Contra a Expansão do Óleo de Dendê Industrial na África Central e Ocidental, têm feito um ótimo trabalho para despertar as comunidades deprimidas ao dar visibilidade às suas lutas e suas informações e identificar conjuntamente as oportunidades para deter as plantações de dendê destrutivas por meio de programas de intercâmbio comunitário solidário, incluindo oficinas e visitas a aldeias para incentivá-las a combater a apropriação de suas terras. Além disso, o trabalho conjunto também visa a expor as estratégias e táticas usadas pelas empresas multinacionais que se apropriam das terras das comunidades e alertar as que agora estão ameaçadas por essas ações.

Existe um tipo diferente de solidariedade que você desejaria para fortalecer a resistência contra a apropriação de terras em Camarões ou em outros lugares da África?

O fortalecimento da solidariedade comunitária e o intercâmbio entre aldeias afetadas direta e indiretamente por projetos de desenvolvimento, para aumentar a autoconfiança em nível comunitário, é a espinha dorsal de qualquer resistência bem-sucedida. Outros pontos importantes são: intercâmbios intercontinentais com diferentes comunidades para compartilhar experiências, ajudando a dissipar e expor as fraudes e táticas das empresas; visitas constantes às aldeias que foram ou podem ser afetadas para mantê-las em alerta contra a expansão injusta das plantações de dendezeiros e outros projetos sem o devido consentimento; uma exposição mais forte das mentiras e das afirmações das empresas sobre desenvolvimento sustentável e como elas as manipulam em vez de respeitar o direito das comunidades a seu Consentimento Livre, Prévio e Informado.

Precisamos alinhar a resistência das comunidades locais às oportunidades alternativas que se apresentam à comunidade local em geral. Investir no fortalecimento da capacidade de organizações e comunidades locais para implementar uma “Resistência Confiável da Comunidade” capaz de evitar a apropriação de terras e as violações dos direitos humanos no continente à medida que ocorram. Organizar uma série de eventos, como workshops, seminários, visitas a aldeias, encontros pessoais e presenciais entre os principais atores.

Há uma necessidade fundamental de construir uma parceria colaborativa mais forte entre ONGs e as comunidades do Norte e as do Sul, a fim de combater a apropriação de terras e o desmatamento, porque esses empreendimentos são impulsionados e estimulados por investidores e políticas governamentais, incluindo as escolhas feitas pelos consumidores nos países do Norte. Encontros e intercâmbios entre comunidades do Norte e do Sul permitirão entender melhor como as decisões políticas, os governos e as corporações estão afetando o meio ambiente e abusando dos direitos humanos no Sul, principalmente quando as empresas bombardeiam com comunicações e propagandas enganosas para encobrir a destruição e os abusos que causam, associados a produtos que elas afirmam ser sustentáveis.